OLHOS
FECHADOS
Ivone Carvalho
É madrugada, o melhor horário para uma introspecção. Luz apagada, somente a claridade da lâmpada que ilumina a rua e que insiste em penetrar suavemente através da fresta deixada por uma lâmina, meio defeituosa, da persiana vertical. Semi-deitado no sofá macio que adere as formas do meu corpo, segurando o copo de uísque numa das mãos e o cigarro na outra, ouço a música clássica que faz o fundo do ambiente onde o silêncio predomina.
Só dentro de mim ele não existe.
Fecho os olhos e viajo recordando toda uma vida. Não, não é toda uma vida, mas é como se fosse. Afinal de contas, não faz tanto tempo assim, mas, desde o primeiro instante, foi como se a gente sempre tivesse se conhecido.
Vejo-a ainda dançando no seu baile de debutante. Uma verdadeira princesa, deslumbrante. Todos os rapazes queriam dançar com ela. No salão, parecia uma bailarina profissional. Sua leveza chamava a atenção de todos. Ela me encantava. Naquele momento eu daria tudo para ser quarenta anos mais jovem. Queria ser notado tanto quanto a notava. Era ainda menina, mas seu belo corpo eu podia imaginar através das sedas que o cobriam.
E o desejo tomava conta de mim. O melhor seria sair dali porque eu mesmo já tinha dúvidas se conseguiria me controlar e não demonstrar o meu interesse por ela, às outras pessoas. Foi depois da valsa que eu me enchi de coragem e a convidei para dançar. Preparei-me para uma desculpa qualquer da parte dela, pois tantos eram os rapazes da sua idade que lhe faziam a corte.
Fiquei surpreso, embora já tivesse notado sua gentileza para com todos, quando a vi segurando o meu braço e me levando para o meio do salão. Eu tremia. Sentia-me um adolescente. Jamais havia dançado daquela forma, com tanto entusiasmo, transbordando carinho, orgulhoso do meu par.
Ao terminar a música, agradeci respeitosamente, mas a surpresa maior ainda estava por vir.
Puxando o meu braço com doçura, perguntou meu nome, quem eu era e sugeriu que mais tarde voltássemos a dançar. Agradeci e concordei rapidamente, temendo que ela desistisse do convite. Voltei à mesa onde estava a minha família, mas não via mais ninguém além da formosa debutante. Queria fazer perguntas sobre ela ao casal amigo que me levara ao baile. Mas sabia que isso chamaria muito a atenção. E me calei. Preferi apenas
contemplá-la de longe.
Iniciava-se a última seleção de músicas e seria a minha última oportunidade, que eu não deixei escapar. Como da primeira vez, ela sorriu, abraçou-me meio à distância e saímos dançando. Eu devia estar louco, porque tinha a impressão de que ela sentia o mesmo que eu. Sentia seu corpo aproximar-se cada vez mais do meu. Sentia sua respiração forte, seu coração acelerado. Por alguns instantes senti que estava trêmula como eu.
O baile acabava e eu não sabia como fazer para pedir-lhe um telefone, o endereço, ou alguma outra forma de poder reencontra-la. Mas ela pressentiu meu desejo, que talvez fosse idêntico ao dela, porque adiantou-se pedindo a um garçom uma caneta, anotando seu telefone num guardanapo.
Eu estava feliz, ela não tinha se importado com os meus cabelos grisalhos, nem com a possibilidade de parecer seu pai. Ela também queria me ver novamente e isso era tudo que eu queria!
Com um auto-controle que nem mesmo eu entendi, deixei passar o fim de semana sem procura-la, telefonando apenas no meio da semana seguinte.
Agora, aqui neste silêncio, minha alma grita e chora enquanto bebo e fumo um cigarro atrás do outro, sem conseguir conter as lágrimas. Procuro forças para voltar a viver, porque talvez a vida jamais volte a ter, para mim, a mesma razão que existia antes.
Deixei de ser o mesmo homem quando sua mãe, entre lágrimas, contou-me o terrível acidente ocorrido quando ela viajava para o litoral.
Naquele domingo, a estrada molhada pela chuva torrencial levou não só minha debutante, mas meu coração e parte da minha vida.
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