OUTUBRO ESQUISITO
Eduardo Prearo
Pus os pés na estrada num sentido literal. Naquela manhã ensolarada de um outubro do novo milênio, sentimentos fortes de ideais abortados tornavam-me pessoa estúpida. Foram sessenta quilômetros percorridos sem muito escândalo. Ninguém se arriscou a me dar carona, e olha que tentei. Creio ter dormido um pouco no acostamento, carros passavam por mim com velocidade incrível, de maneira vertiginosa. Lembrei-me da terapia que abandonara, dos diálogos, daquelas diálogos com
JV.
— Cheguei a pensar que não era sadio. Quase sempre chego a essa conclusão quando converso com algum profissional.
— O senhor crê que todo mundo é sadio?
— É essa coisa de lucidez. Claro que existem pessoas preguiçosas que são lúcidas, talvez uma coisa não tenha a ver com a outra. Tenho por vezes a impressão súbita e passageira de que sempre serei mal interpretado. É como se houvesse uma fórmula, uma receita muito especial para saber dar-se bem com os outros. Mas será mesmo necessário ser compreendido pelos outros...mesmo quando se trata de sobrevivência? Diz-se que na América a gente nem precisa se justificar, mas creio que isso seja uma inverdade da grossa.
— O senhor crê no amor?
— O ódio é mais fácil de se definir.
— Pois, então, defina-o para mim.
— É querer que alguém morra, JV.
A madrugada mal chegara, a lua amarelada estava irreal; parecia submersa num céu d'água. Resolvi voltar a caminhar, mesmo com os pés inchados, cheios de bolhas e mais bolhas. Descalço também não dava pra andar, ainda mais num asfalto duro e repleto de pedrinhas negras.
— Não tenho juízo, segundo a maioria. Sabe, JV, é até um pecado achar que vc não me quer bem. Quem no meu lugar se mataria? Na juventude até li aquele livro denominado "Técnicas de suicídio", e o achei muito interessante. Hoje nem existe mais, é proibido. Os profissionais não nos imbecilizam à toa, tem coisa que é alucinação mesmo!
— Dê um exemplo de alucinação vivenciada pelo senhor.
— Por que você quer saber, JV? Em todo caso...é essa mania esquisita das pessoas por vezes me chamarem de Hitler e...
— Persecutoriedade. Só grandes estadistas foram comparados a tal.
— É, tenho alucinações desse naipe. Já imaginou se fosse real? Bom, se fosse real, poder-se-ia considerar a populaça como muitíssimo inteligente, não? Afinal, dizendo isso, se eu reclamasse, diriam que foi alucinação. É, JV, o mundo é dos espertos. Expertos.
— Depois dessas análises ainda não aprendeu que não deve ligar, que todos são inocentes e puros, que se falam é por amor? Cuidado, hein, algum profissional irá te ameaçar se continuar com isso!
Encontrei um menino na estrada, de uns dezesseis, dezessete anos, que me convidou para pegar um atalho com ele. Estava de bicicleta. Claro que recusei, talvez burramente, mas já avistava as luzes da cidade. Obrigado, meu menino, disse eu, peremptoriamente. Perguntei-lhe quantos quilômetros ainda faltavam e ele me respondeu que oito. Na verdade, ainda faltavam vinte. Mas tudo bem, como dizem os bons, e continuei caminhando. Sessenta quilômetros é muito pouco para alguns, eu sei, é quase nada. E eu ali, sofrendo...é que talvez não soubesse para onde ir, havia perdido o rumo, a perspectiva. A vida não é como nas novelas, não é?
Cheguei finalmente na cidade, cidadezinha deserta e medonha, e fui direto para a rodoviária. Só abria as cinco. Esperei e pedi...Não sei se isso pode ser contado. Enfim, consegui voltar para a cidade onde estava, e o motivo de ter pegado a estrada assim, escapado da turminha, foi muito simples: não estava suportando ninguém e vice-versa. As pessoas que conheço são sempre respeitosas, bom-caráter, sabe. Difícil alguém se danar. Revi essa turminha e fizemos as pazes, pelos menos por algumas horas. Como fui idiota! Ah, sorry, dizem que não pode ficar se julgando, é ser negativo!
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