ESPERANDO GODÔ...
Doca Ramos Mello

"Levando corno, eu?!"

Ivonetinha surtou bravo. Esbravejando e cuspindo fogo e fel, conseguiu juntar na cabeça quente e ornada a memória de uns incidentes aos quais não dera a importância devida, reconhecia agora, por puro desleixo de mulher, ah, Godofredo, canalha! Então o seu Godozinho mantinha um caso já largamente conhecido e comentado, com uma piranhazinha jovem qualquer, arrastando na pouca vergonha o amor, os anos de luta, a convivência e a cumplicidade que os unia?

Inevitavelmente, o filme dos anos de vacas franzinas apareceu em sessão extra para ela, os filhos com sarampo, as privações exigidas para manter a família e formar, finalmente, um patrimônio bom, as discussões eternas com a insuportável mãe dele, o carro que ele perdeu na praia por causa de uma super dose de caipirinha, aquela história do aval que tiveram de pagar quando Suzaneide, a cunhada caçula e irresponsável, deixou de quitar as mensalidades do aluguel, o cachorro chato e mijão, o ronco dele que a tirava em pânico do quarto... E decidiu que ia cobrar tudo, até o último vintém de Pedro, se precisasse, mas que não ficava assim, ah, não ficava mesmo.

Inocentona, lerda, burra, tinha arcado com a decoração na testa sem que um único filho de uma égua tivesse tido a caridade de alertá-la sobre os fatos, como?! Onde estavam os amigos, os conhecidos, os inimigos, o mundo?! E Florbela, sua melhor amiga e confidente, que soube apenas desenhar na cara flácida uma careta desenxabida como quem sentia muito... Uma ova. Sentisse e teria contado a ela o teor dos acontecimentos. Sentisse e teria atentado para a largueza de tempo e ação da traição que sucedia na cara do mundo todo, às escâncaras, enquanto ela, cornuda, ficava no centro do picadeiro, fazendo graça sem ganhar nada e sem saber que tipo de fantasia vestia, trouxa. Sentia merda nenhuma.

E agora?

Agora, ensandecida, Ivonetinha bebia os detalhes sórdidos, sorvendo com ódio mortal todas as respostas que tirava de Florbela com as mãos em torno de seu pescocinho de cobra. Quem, quando, onde, há quanto tempo, por que, a que horas, com que freqüência, como funcionava o esquema e quanto estaria custando a brincadeira para os cofres da família de Godô, o filho de uma cancela batedeira. Godofredo, aquele cafajeste filho da mãe, o amor de sua vida, o porco chauvinista, o pai de seus filhos, o Jece Valadão da sua história, o filho da puta. Que deveria estar arquitetando passar a perna nela e nos meninos, na crença de torrar nos braços da vagabundinha a faculdade dos filhos, as casas, a pequena chácara, as aplicações suadas. A ela, restaria o abandono na vastidão daquela estrada tão longamente partilhada, com seus 48 anos na mão, sem rumo nenhum, a empinar papagaio com uma dor de cotovelo do tamanho de um boi? Pois sim.

Quando chamou o marido às falas, Ivonetinha abriu fogo. Perguntou-lhe se já dissera para a fulaninha que sofria de diabetes e tinha sérias restrições alimentares, que o joanete o fazia ficar dias e dias a gemer sem poder calçar sapatos, que não sabia dançar nem o dois p'ra lá, dois p'ra cá, que tinha mania de perseguição e comia jiló regularmente, que assistia aos jogos do Palmeiras com a camiseta do time virada no avesso e comendo bolacha de água e sal, e que o galo estava a séculos de executar a sinfonia nas madrugadas em que mais se esperava dele uma boa performance... E entre palavrões e impropérios, destilou as cifras do divórcio, que fizeram o sujeito bater as pernas.

Secas as lágrimas, enxuto o coração, Ivonetinha garantiu que, a partir dali, ingressaria com muita fé e devoção na mesma seita abraçada pela mulher igualmente traída de um famoso cantor sertanejo, emplacando, de cara, um namorado 20 anos mais jovem que ela, atleta de abdome tipo tanquinho e peito esculpido em horas regradas de halteres pesados. Florbela, na qualidade de ex-melhor amiga, ainda ensaiou algumas observações, que Ivonetinha tomou por insinuações provenientes da arraigada mentalidade sutilmente machista que ainda habita a alma feminina - e mandou Florbela catar lata: "Você acreditou mesmo que eu passaria o resto de meus dias a chorar o leite derramado e esperando Godô? Faz-me rir..."

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