ORGASMO ATLÉTICO
Carlos C. Alberts

Um viciado. 

Não, esta não é a palavra correta. Dá impressão de falta de força. Conivência. Relaxo. 

Quem o visse pedalando, ereto, não imaginaria. Esbelto, bronzeado, músculos exatos (firmes, mas sem hipertrofia). Porte altivo. Bermuda ciclística preta e camisa amarela. Bicicleta prateada. 

Dependente químico.

Melhor. Apresenta uma relação com o patológico. Sim, uma doença. Esta é a verdadeira natureza de seu problema.

Cidade pequena. Mesmo morando em um bairro central, estava próximo do limite urbano. 

Saindo de sua rua, toma a avenida que deixa a cidade. Cerca de um quilômetro depois, alcança o trevo com a rodovia. Atravessa-a com cuidado. Do outro lado começa, com piso de chão batido e macadame de granito, uma das vias rurais do município. 

Imprimindo força, aumenta o ritmo. Troca, continuamente, as marchas de ambos os câmbios, de maneira que a pedalada fica pesada e sua velocidade aumenta. Depois de cem metros, a estrada plana ladeada por árvores altas, muda de maneira radical. 

Como que saindo de um tipo de caverna sombreada, o cenário à frente é o de uma série de vales e morros. Muitos tons de verde. Realçados pelo sol forte da manhã de outono. Céu azul-topázio. Sem nuvens. Qualquer um ficaria sem fôlego com tanta beleza.

Mas os olhos tristes por trás das lentes acrílicas, espelhadas, desenho futurista, enxergam somente a estrada poeirenta. Uma longa descida. Muito inclinada. Mais de cinqüenta graus. Interrompida por estreitos platôs. Seguem as curvas de nível das plantações. Assim, são pirambeiras de quinhentos metros, seguidos de dez metros planos. Outra descida. E assim por diante.

Mais de setenta e cinco quilômetros por hora. Piso escorregadio. Buracos. Areia. Teve que se sentar no selim por causa do equilíbrio. Montanha-russa para adultos de coragem. Mas ele não está sorrindo.

No vale plano, ladeando o riacho, a estrada passa junto de chácaras e pequenos sítios. Um pesque-pague. “Golden-Fish”. Pequeno e hospitaleiro. Nem vira a cabeça. 

Começa a subida do próximo morro. Diminui a velocidade e troca as marchas para catracas maiores, na roda traseira. E engrenagem menor, no movimento central. Assim fica possível encarar a ladeira. Tão íngreme quanto tinha sido a descida. Ereto novamente. 

Além de íngreme, a subida é longa. Quase dois quilômetros. Ao chegar ao topo, pára. Não é um descanso. Não está suando. Nem ofegante. Apenas noventa e seis batimentos por minuto, informa o exame que faz ao tocar o pescoço sobre o local onde passa a artéria.

Encosta a bike e verifica as informações do computador de bordo. Distância percorrida: 5.6 Km; Velocidade média: 28km/h; Velocidade máxima atingida: 77km/h; Duração: 12 minutos.

Ainda que não esteja cansado, senta-se sob a Paineira, majestosa e isolada, à beira do caminho. Fora lá que tudo havia começado. Dois anos antes. Na época em que sua vida entrou em decadência. Quando sentiu o primeiro barato de seu vício. 

Ao contrário de hoje, naquela vez demorara mais de meia hora para alcançar a Paineira. Quase não conseguia respirar. Suado e completamente exausto, sentara para descansar. Havia sido a primeira incursão fora da cidade. Naquele tempo estava determinado a dar um basta na vida sedentária. 

Encostado na árvore, já quase refeito do esforço, admirando a paisagem, sentira o primeiro efeito. As dores nas pernas e braços desapareceram rapidamente. Um relaxamento profundo. Sensação de bem estar. Abrangente. Onipresente. 

Paz, alívio, disposição e otimismo. Tudo junto. 

Ao voltar para casa, naquele dia, sentiu de novo. Que sensação. E duradoura. Sua semana foi excelente.

Endorfinas. O cérebro produz quando existe grande esforço físico. Para aliviar as dores musculares. 

Entrou para uma academia. Começou a malhar duas vezes por semana. Sempre com aquela sensação no fim. Ou ao chegar em casa. Logo estava fazendo esporte todos os dias. Tênis. Natação. Musculação. E bicicleta no fim de semana, porque ninguém é de ferro. 

O primeiro sinal de algo errado foi quando houve uma lesão muscular. Teve que ficar parado por duas semanas. Fazendo fisioterapia. Sentiu-se triste. Deprimido. Não dormia direito. 

Mas cumpriu corretamente as orientações médicas. Para recomeçar os exercícios.

Aumentou a dose. Cada vez mais tempo treinando. Seu mundo mudou. Quase não encontrava ninguém que não fosse em ambiente esportivo. Sua esposa até parou de reclamar. No trabalho, seu rendimento diminuiu. Faltava constantemente: mais tempo para o esporte.

Não lia mais. Nem jornal. O gasto com a Internet diminuiu. Mandou desligar o cabo da TV. Não usava mais.

Agora, novamente recostado na Paineira, percebe que precisa fazer alguma coisa. Mas não vai ser hoje. Ainda tem uns trinta e cinco quilômetros a percorrer. Para poder sentir alguma coisa. 

Naquela estrada que conhece tão bem. Onde continua perdido.

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