As corridas,
brincadeiras e movimentações foram interrompidas pelo sinal estridente
que marcava o final do recreio. A sirene ainda soava quando a menina surgiu
pela esquina do tapume que cercava a construção. Segundos depois, outra
aluna surgiu por detrás da primeira que interrompera a pressa para acariciar
o joelho, como que limpando a pele ralada. A aluna empurrou a primeira
pedindo urgência nos gestos. Saltaram o pequeno cercado que limitava o
acesso às obras e, de mãos dadas, atravessaram o pátio numa breve corrida.
Alcançaram o corredor interno do pavilhão escolar, crentes que não havia
testemunhas da peraltice. O diretor, homem severo, não se deu ao trabalho
de interromper suas atividades, apenas acompanhou com os olhos as pequenas
sumindo pela porta do sanitário feminino. Tinha certeza que terminado
o turno de aulas poderia investigar os motivos que levaram as alunas ao
pavilhão escolar em obras. O motivo não poderia ser mais urgente que suas
tarefas. Baixou os olhos para as folhas diante de si e, sem ler o conteúdo,
recomeçou a tediosa maratona de assinaturas.
Bem antes de a sirene anunciar o final da aula os alunos já estavam a
postos, prontos para debandar. Como se fosse um código para o fim do mundo
o som estridente autorizou a baderna. Barulhos de cadeiras e mesas se
arrastando, passos apressados, chamados aos gritos e risos tomaram conta
da pequena escola municipal. O diretor interrompeu sua rotina de assinaturas,
posicionou a tampa da caneta protegendo a ponta e guardou os papéis na
pasta parda. Lembrou que tinha uma tarefa antes de ir pra casa e ficou
perscrutando pela janela até se lembrar que a obra, interrompida, do segundo
pavilhão deveria ser investigada.
Respondeu os cumprimentos de alguns professores que se dirigiam à sala
de reuniões enquanto caminhava para o outro extremo do pátio. Saltou a
pequena cerca limite, não havia mais ninguém a vista. A escola ganhava
ares de lugar abandonado menos de dez minutos após encerrar suas atividades
da tarde. O intervalo para o período noturno era de quase duas horas,
tempo mais que suficiente para que a funcionária colocasse as doze salas
em ordem. Mas não era esse o pensamento do homem que sem esforço transpôs
o obstáculo e entrou pelo pátio interno das salas em construção. Não pensava,
não sabia o que estava procurando, porém saberia assim que avistasse.
Na quinta sala, uma das três que já contavam com portas, janelas e piso
acabado, o diretor encontrou o que procurava. Rastro de pés pequenos marcavam
o pó acumulado no corredor e se dirigiam para a porta que estava cerrada.
Da direção oposta, rastros de pés, bem maiores, marcavam o chão e entravam
no mesmo recinto. O coração do homem acelerou e uma angústia mal dissimulada
fez correr um arrepio pela sua nuca. Afastou a porta dando passagem para
luz. Vacilou antes de entrar e demorou mais que o necessário para se convencer
que seus olhos enxergavam uma dança marcada na poeira. Os rastros de pés
pequenos valsavam com os pés adultos. Num dos cantos da sala um resto
de caixa de geladeira insinuava servir de palco para o final da dança
imaginada. Faltou ar e compreensão por alguns segundos, depois tudo se
fez claro.
Como se fosse um espectro, perambulou pelos seus domínios até que uma
das professoras deu o recado que sua filha o esperava na secretaria. O
tempo havia passado sem que ele percebesse. Seus pensamentos eram vagalhões
que quebravam o raciocínio a cada nova onda, e suas suspeitas recaiam
ora no zelador-porteiro, ora no professor de história, ora no professor
de educação física, ora no professor substituto de matemática e até o
professor Laerte estava na lista: "Afeminado? Grande falso! Mentiroso,
dissimulado" - sua mente gritava entre novas e poderosas vagas quebrando
a lógica. Sua única certeza era que a escola estava sendo assolada pela
vergonha das vergonhas, o mais odioso dos crimes. "PEDOFILIA EM ESCOLA
PÚBLICA" ele via estampando as manchetes de toda região. Desde que o circo
se acabara em cinzas, e o proprietário acusara o filho do prefeito de
patrocinar o show pirotécnico (versão logo abafada), que o nome da cidade
não corria o mundo.
Fazia mais de cinco anos que o comboio se perdera nas estradas do interior
e chegara atrasado para o rodeio anual. Mesmo com as festividades começando
na noite da chegada, o proprietário resolveu armar o espetáculo. Um fiasco.
Sem público a lona ficou abandonada nos três dias de festividades e o
prefeito se recusou a cobrir um terço dos gastos como havia combinado.
Após inúmeras discussões entre o prefeito e o dono do picadeiro o fogaréu
foi mostrado em todos os jornais da região. Os poucos artistas que ficaram
sem rumo, ou não tinham aonde ir, foram acolhidos pela generosidade dos
munícipes, representada pela súbita manifestação solidária da prefeitura.
O zelador da escola era o ex-mágico iniciante que abandonou a possibilidade
remota de fama em troca de emprego fixo e casa. Ele e a esposa, ex-faz-tudo-de-circo
e atual merendeira-arrumadeira, moravam no terreno da escola e trabalhavam
os três períodos sem reclamar horas extras. O anão também aceitara a oferta
municipal e desde então morava nos fundos da prefeitura. Em troca do minguado
salário cuidava da praça, dos canteiros em frente à prefeitura e das poucas
gramas e flores públicas. O malabarista aceitou o cargo de vigilante e
motorista até que foi convidado a prestar concurso na policia militar.
Foi incorporado e destacado para a cidade vizinha prometendo retornar
como sargento. Duas moças o esperam e enquanto sonham com o casamento,
vivem às turras como se faltasse homem. Se faltasse, a ex-trapezista não
estaria casada com o gerente do Banco do Brasil. Coisas miúdas se comparadas
às tormentas quebrando as teorias formuladas na mente do diretor. Todos
seus pensamentos convergiam para a lembrança da menina acarinhando o joelho
ralado antes de pular a cerca.
Durante a refeição o perturbado pai de família ruminava suas alfaces disfarçando
a agonia que latejava em seu peito. A noite inteira buscou culpados e
soluções imediatas para o crime que ocorria em seus domínios. Armou estratégias,
flagrantes, punições, vinganças e nada lhe pareceu suficiente. Pensou
em chamar a policia, em arrancar a confissão das duas meninas, em matar
o desgraçado que maculava suas crianças, ultrajava o nome da escola, enlameava
uma vida toda dedicada ao ensino. Não dormiu mesmo depois que se decidiu
por fazer justiça com as próprias mãos. Concluiu que após consumar a punição
seu nome e o da escola estariam a salvo e vingados.
Pela manhã
sentou-se diante da pasta parda e da caneta fechada sem, no entanto, continuar
a tarefa do dia anterior. Seus olhos dominavam o pátio largo e longo separando
o prédio escolar do prédio ainda em construção. O projeto todo tinha a
forma de 'U' com a abertura voltada para o portão de entrada. De um lado
o pavilhão com doze salas de aula funcionando e sanitários. No extremo
oposto aos banheiros, a sala de reuniões, de diretoria e almoxarifado
formavam um 'J' com a cozinha e o refeitório. Coladas ao salão de refeições,
mais oito salas de aula em construção fechavam a segunda perna do 'U'.
Ninguém passava de um pavilhão para o outro sem que o diretor visse. E
ele estava atento. No bolso do paletó a arma carregada esperava a mão
direita do seu dono.
Durante dois dias seguidos nada escapou dos olhos atentos. Nenhum aluno,
nem aluna, nem professor ou qualquer ser vivente ultrapassou os limites
do pátio em direção à construção. No sábado ele desculpou-se com a família
e marcou plantão. Era tradição o futebol no pátio da escola, as meninas
vinham acompanhar os jogos e era como se o sábado inteiro fosse decretado
recreio. A janela da diretoria se fechou quando o último aluno saiu pelo
portão e o zelador com sua esposa começaram a recolher o pouco lixo.
Domingo foi
dia de mutismo, de semblante fechado, de compenetração diante da televisão
desligada. Na segunda-feira o homem estava em desespero, seus pensamentos
assemelhavam-se ao mar revolto, considerava a hipótese de interrogar as
meninas em busca do agressor, mas o que perguntar? Como chegar nas respostas
que precisava? Deixou passar mais um dia e na terça- feira convocou as
duas pretensas vítimas a comparecerem em sua sala. Dois rostinhos apreensivos,
guardando olhos úmidos, chegaram dispostos a confessar quaisquer faltas.
Diante da pergunta afável solicitando os motivos que às levaram a ultrapassar
os limites do pátio e invadir o canteiro de obras, os rostinhos inocentes
se iluminaram.
A resposta
era que três semanas antes uma gata havia dado cria numa das salas. Lindos
gatinhos, mas a mãe havia se mudado com as crias e, naquela quarta-feira,
as meninas quiseram conferir se a mudança era mesmo definitiva. Pelo jeito
era. O diretor tornou à sisudez de hábito, porém sem coragem de perguntar
sobre o crime hediondo que imaginara. Limitou-se a proibir o retorno delas
na área em obras e dispensou-as. Sentiu certo alívio e até guardou a arma
na gaveta, considerando-se um estúpido. Mas em seguida a lembrança das
marcas de pés pequenos e grandes, envolvidos num ritual dançante, voltaram
a encapelar sua mente. A nau ainda não estava ancorada, o papelão no canto
da sala seria prova de que sua escola servia de alcova. Não teve coragem
de pedir que o zelador armasse campana, o homem tinha suas tarefas normais
que tomavam todo seu tempo. Achou melhor não se comprometer com um pedido
desse. Corria o risco de fazer novo papel ridículo. Decidido a resolver
sozinho o mistério, preparou-se para vascular o local no final do turno.
Bem antes de a sirene anunciar o final da aula os alunos já estavam a
postos, prontos para debandar. Como se fosse um código para o fim do mundo
o som estridente autorizou a baderna. Barulhos de cadeiras e mesas se
arrastando, passos apressados, chamados aos gritos e risos tomaram conta
da pequena escola municipal. O diretor interrompeu sua rotina de leitura
e apontamento de dados, posicionou a tampa da caneta protegendo a ponta
e guardou os papéis na pasta parda. Lembrou da tarefa que tinha se proposto
e ficou olhando para o pátio vazio.
Durante mais
de meia hora ficou em dúvida se vasculhava as salas em construção ou deixava
para o dia seguinte. A merendeira, que no final dos turnos assumia o cargo
de arrumadeira, terminou seu trabalho e voltou para o refeitório. De lá
saía para os fundos da escola onde morava com o marido. Este já se posicionava
diante do portão e preparava-se para receber os primeiros alunos do turno
da noite que chegavam mais cedo para aula de educação física. O zelador
ficaria ali por mais de hora. O diretor pensou que deveria aproveitar
o resto de luminosidade natural e olhar os vestígios de rastros sob nova
ótica. Pode ser que um casal de alunos do turno da noite estivesse cabulando
aula para namorar. Melhor seria conferir o lugar antes que escurecesse
de todo.
Perdeu alguns minutos guardando objetos e considerando adiar novo papel
ridículo, depois decidiu por encerrar o assunto e atravessou o pátio.
Cumprimentou alguns alunos, o professor de educação física e, como se
fosse fazer vistorias de rotina, pulou o cercado para sumiu por detrás
dos tapumes. Entrou no corredor interno e foi olhando sala por sala. Como
da outra vez, pode perceber o rastro de pés pequenos entrando na quinta
sala. Sorrateiro, aproximou-se da porta e ouviu ruído dentro do recinto.
Com o coração acelerado colocou a mão no bolso vazio se maldizendo por
deixar o revólver na gaveta. Não era um covarde, era prudente! Tal qualidade
fez com que espreitasse pela fresta da janela. Qual pônei servil, o anão,
que nas tardes de terças e sextas cuidava da grama e dos canteiros da
escola, era cavalgado pela mulher do zelador. O diretor ficou algum tempo
espiando a cena sobre o papelão de geladeira e então, sorrateiro como
chegara, tirou os olhos da dupla e afastou-se. Nos mares de sua mente
a nau atracou ao cais ao mesmo tempo em que o sorriso brotou em seus lábios.
Na terça-feira seguinte os minutos passavam, o jardineiro podava a grama
e o diretor calmamente aguardava o final do período da tarde, dentro de
sua mente o mar se encapelava. Guardado na pasta parda, um despacho, sem
assinatura, estabelecia que os alunos se tornariam responsáveis pelos
jardins da escola como parte do programa educacional. Tão cedo não seria
assinado.
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