CONTAGEM REGRESSIVA
Vitor Furioso

Aqui estou eu, deitado em frente a janela, a chuva cai lá fora, no escuro, no frio. 

É bom ficar aqui, observando as pessoas, o trânsito, as coisas parecem bem menores vistas aqui do décimo terceiro andar, assistir o que ocorre lá fora é como uma terapia para mim, fico me lembrando de quando eu estava lá também, lembro-me do que fazia, dos amigos que possuía, era muito bom estar junto dos amigos, jogando conversa fora no bar, bebendo uma cerveja gelada e observando as garotas que passavam. Nos divertíamos fazendo análises e comparando a beleza das garotas com times de futebol, lembro-me bem deste tempo, éramos bem jovens:

- Olhe só, Carlão, acabou de chegar uma garota Palmeiras, olhe para trás!!

Eu me virava e fazia o comentário:

- Ah, Atum, esta aí é razoável, está mais para Ituano do que para Palmeiras!!

Ah, será que irei sentir saudades do Atum, Mané, Jorjão, Alexandre e dos outros amigos? Acho que sim, mesmo sem saber para onde irei quando sair daqui, às vezes me sinto só neste quarto. Tenho uma vitrola aqui, pois sempre apreciei mais os velhos discos de vinil, são mais bonitos e grandes, a arte da capa fica muito mais bonita em um LP, no CD as capas são muito pequenas, apesar de ser jovem, eu gosto de escutar os velhos discos de vinil. Possuo também uma televisão e alguns livros para me distrair, além da janela, é claro. Infelizmente, eu não gosto muito dos programas televisivos, são todos iguais, sempre exaltando artistas ruins. Já a vitrola me anima, e muito!! Sempre que escuto um disco, eu me esqueço do resto, músicas me distraem, fecho os olhos e escuto cada detalhe das canções, escuto várias vezes o mesmo disco, mas cada vez que escuto, analiso um detalhe diferente nas canções, na primeira audição analiso a música como um todo, nas audições seguintes eu passo a analisar cada instrumento que compõe a música, primeiro a guitarra, depois o baixo, a voz e a bateria. 

Eu gostaria de abrir os olhos, após escutar as músicas, e me ver em cima de um palco, como fazia antigamente, gostaria de abrir os olhos e ver a platéia vibrando ao escutar as músicas que minha banda tocava, gostaria de abrir os olhos e respirar aliviado, sabendo que isto que está acontecendo comigo é só um sonho, mas infelizmente não é, e quando abro os olhos eu caio na realidade, estou deitado na cama de um hospital, e a única platéia que tenho, é a enfermeira que vem me observar de hora em hora.

Eu costumava gostar da noite, era o meu momento de inspiração, costumava ficar acordado por muito tempo durante a madrugada, mas hoje eu não gosto da noite, pois eu sei que mais um dia se foi, e não vai voltar, a contagem regressiva já começou.

Com o corpo imóvel, consigo apenas movimentar minha cabeça, e voltando as atenções à janela, vi o padre José lá embaixo, ele acabara de sair daqui, minha tia Zilda o trouxe aqui para rezar por mim, não gostei disso, eu não possuo a fé que existe no coração dele, não acredito em Deus, se ele realmente existisse, me tiraria desta situação. Dizem que é normal as pessoas questionarem a fé quando estão em uma situação difícil, mas eu não, sempre acreditei na ciência, e se esta não foi capaz de me ajudar, então nada mais pode.

Hoje é dia de visitas, não sei quem virá me visitar hoje, minha irmã sempre traz alguém diferente para conversar comigo, na semana passada quem veio foi a Suzana, uma amiga que conheci nos tempos do colégio, ela sempre gostou de mim, tivemos um relacionamento curto na época, não deu certo, mas ela nunca perdeu sua paixão por mim. Ela chorou muito aqui, ao meu lado, senti pena dela, isso é estranho, as pessoas que vêm aqui, sentem pena de mim, e eu sinto pena delas, não estou triste, já estou conformado com o meu destino, não há mais o que fazer, e tem mais, eu não sei se daqui, estarei indo para um lugar ruim, não sei para onde vou ou se este lugar existe, talvez a morte seja mais confortante do que a vida, eu penso que, talvez, estarei melhor que estas pessoas que choram ao meu lado, mas isso eu só irei saber em um futuro próximo.

Não estou me sentindo muito bem, parece que estou tonto, se eu pudesse, levantaria da cama e andaria um pouco pelo quarto, eu quero ouvir o outro lado do disco que estava tocando, o ruim do LP é que temos de trocar o lado, mas não tem problema, mesmo assim eu prefiro escutar a minha velha coleção de discos.

Nesta semana eu li dois livros que ganhei de presente, tive tanto tempo para ler e não o fazia, eu acabei descobrindo este prazer aqui neste leito, inclusive, eu já disse para a Tayná sempre incentivar Marquinhos a ler bastante, é bom ele ir se habituando à leitura desde pequeno, existe um mundo a ser descoberto nos livros, e eu quero que meu filho também tenha o prazer de desfrutar deste mundo.

Chegou a visita, hoje minha irmã não veio, apenas minha esposa apareceu. Ela está diferente hoje, notei isso logo que entrou.

- Olá, meu amor!

- Oi, Tayná, você está diferente hoje, ou é só impressão minha?

- Nossa, você me conhece bem mesmo!!

- Pois é, marido exemplar é assim.

- Ah, Carlos, é que eu decidi contar para o Marquinhos o que está acontecendo.

- Não é melhor esperar um pouco?

- Eu acho que não, nós não sabemos quanto tempo de vida você ainda tem, ele precisa saber a verdade, precisa se despedir de você, ele já vai fazer cinco anos, é um garoto esperto, já me perguntou quando você vai voltar da viagem, não posso mais mentir para ele!!

- É, você tem razão...

- Carlos, mas eu vou lhe pedir para que você fale com ele, eu não consigo fazer isso...

- Não chore, querida, por favor...

- Eu não consigo...

Ela me abraçou forte, e pela primeira vez, desde que entrei neste quarto, eu chorei, e chorei muito!! 

Neste instante, meu filho entra no quarto, limpando as lágrimas que escorriam pelo seu rosto, Tayná o trouxera consigo, ele se aproximou da cama, enquanto ela se afastava.

Desta vez, quem me abraçou foi meu filho, ficamos abraçados durante cerca de cinco minutos, até eu começar a falar:

- Filho, tem algo que eu preciso lhe dizer...

Marquinhos, me interrompendo disse:

- Não precisa falar nada papai, eu já sei de tudo, a vovó me contou que você vai embora e não vai voltar mais, por isso eu quis vir aqui, para me despedir de você, papai...

Tayná saiu do quarto, deixando-me a sós com Marquinhos.

- Sim, filho, papai está muito doente, e em pouco tempo, eu irei embora.

- O Senhor vai morrer, não é, papai?

Abraçado com Marquinhos, olhando para a janela e fitando as estrelas, me despedi de meu filho, que começou a chorar novamente, disse a ele que eu o amava, e que era para ele cuidar bem de sua mãe. Não lhe dei muitas instruções, ele vai viver bem a vida, fará as escolhas dele, a minha vida está no fim, e a dele está apenas começando.

- Filho, não quero vê-lo chorar, seja forte e viva feliz, eu estarei lhe apoiando em todas as suas escolhas, e estarei bem.

Quando eles foram embora, eu senti até uma sensação de alívio, pois não gosto de vê-los tão tristes.

Acredito no meu moleque, sei que será um bom rapaz.

Voltei a observar as ruas pela janela, os prédios já estavam com poucas luzes acesas, a chuva havia parado de cair, mas o frio não passou.

Estou me sentindo mal, não é o mesmo mal estar que normalmente sinto devido à doença, acho que vou chamar a enfermeira, assim aproveito e peço para ela virar o lado do disco que estava tocando, assim irei me distrair novamente, fechar os olhos, e aguardar a decisão de meu destino.

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