DOÇURA
Míriam Salles
Olho pela janela.
Lá fora tudo é luz e cor. Cá dentro, tudo é escuro e dor.
Desde cedo fui cercada de doçura. Criada numa família grande, tive a sorte de ser amada a mais não poder. Fui tratada a pão-de-ló, mimada como se mimam as crianças gordinhas, rosadas e carinhosas. A vida foi muito fácil na primeira infância e só fui saber o que era amargor quando cheguei à adolescência.
Tomo um gole de café fumegante, tão quente que me queima a língua. A dor me faz pensar na outra dor, menos física, mais intensa, a dor da perda. Reflito sobre a perda. Perdi? Mas se nunca tive... Posse indica objeto. Teria eu transformado meu amor em um objeto passível de possibilidades infinitas? Haveria em algum lugar um amor-objeto, abjeto, disponível?
Passo os olhos sobre o açucareiro e me sirvo de colheres cheias de cristal amarelado, transformando o café numa calda grossa e adocicada. Sorvo o doce agora frio, tentando me apropriar dessa qualidade que ora me falta.
Doçura era minha sombra, parte indivisível de mim. Tento lembrar quando foi que a perdi.
Teria sido naquele dia, quando eu me encontrava só, quando meu vizinho me pediu uma xícara de açúcar e levou um pedaço de mim que eu desconhecia?
Ou teria sido quando minha melhor amiga decidiu que eu não merecia ter o amor daquele por quem eu me apaixonara?
Talvez tenha acontecido quando senti aquela dor atroz que me atravessava o corpo feito faca quente e circundava minha cintura explodindo no baixo ventre. Dor que só parou quando o sangue fluiu grosso, cheio de coágulos espessos que se assemelhavam a pedaços de carne rasgada.
Tomo a última gota da doçura alternativa e olho novamente pela janela.
Posso ver as últimas luzes se acendendo no horizonte. Os últimos raios de sol sendo engolidos pela escuridão. Olho pela última vez para a carta, a última também, onde pude ler as últimas palavras "Seja feliz!".
Giro o corpo no batente e me solto, sorvendo o doce ar da vida pela última vez.
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