O HOMEM NO VIADUTO
Mariazinha Cremasco
Ela sempre gostou de olhar pelas janelas. Sempre buscou ver
coisas.
Sabem de que tipo de coisas estou falando, não? Mas ela nunca tivera sorte. O máximo que conseguira, nas vezes em que
ficara lá, debruçada, fora ver casais brigando, a vizinha fritando um ovo ou alguém colocando roupa no varal. Quando criança, gostava de espiar
pelo buraco da fechadura. Nunca pegou nada. Nunca viu nem ouviu algo ao menos parecido com os pais fazendo amor. Um dia escutou a avó gemendo no quarto fechado. Ficou doida, num misto de sentimentos - entre vergonha, remorso e luxúria. Correu para espiar, excitadíssima. Que nada! A avó estava com cólicas e o avô lhe aplicava compressas de panos quentes na barriga. Uma decepção.
Na época, nem conhecia essa palavra, mas seria ela uma voyeur?
Se fosse, então era uma voyeur frustrada. Já tivera até binóculos, mas nada de ver algo que realmente gostasse, que realmente satisfizesse suas necessidades voyerísticas.
Para não dizer que nunca vira nada, uma vez observara um homem, num ônibus, bolinando uma menina. A jovem parecia apreciar, pois não saía do lugar. Ele se encostava nela. Percebeu que estava excitadíssimo e, para dizer a verdade, ela
mesma também estava. Mas não passou disto. Viu o homem descendo do ônibus com a barraca armada, como diria sua avó. E aí acabou seu fetiche. Em nada. De nada serviu. Queria mesmo era ver a conclusão, a cena final.
Lera uma vez numa matéria de revista que em São Paulo existiam lugares com
cabines onde os homens observavam as moças através de um vidro, e elas não podiam vê-los. Enquanto elas faziam ceninhas,
tocando-se, mostrando as partes íntimas, eles, do lado de cá do vidro, se masturbavam. Nossa! Ela
sentiu calor só de ler a reportagem. O que não daria para ver esses homens.
Apenas observá-los, nada mais. Eles olhando as moças e ela os olhando. A voyeur dos
voyeurs.
Com o tempo, o fetiche esfriou um pouco, pois suas tentativas de flagrar
anonimamente uma cena excitante nunca deram certo. Nas tais cabines jamais teria coragem de aparecer. Concluiu que eram coisas de criança, de adolescentes, e esqueceu um pouco delas.
Mas naquele dia, indo ao encontro de uma amiga, passou por um viaduto e, para sua surpresa,
sem janelas, sem binóculos, sem buracos de fechaduras, ela viu. Ao ar livre, no meio da rua, sob o viaduto, um mendigo sujo se
masturbava. Num primeiro momento, ficou pasma. Ali, bem ali, num lugar público, um homem, desprovido de qualquer pudor, tinha o membro intumescido (achava lindo quando lia isso nos contos eróticos) nas mãos e o esfregava desesperadamente. Os carros passavam devagar, quase parando. Teve tempo suficiente para observar bem o homem.
Cabelos desgrenhados, roupas rasgadas e encardidas, pés descalços, mãos sujas, farrapos. Presas à sua cintura, uma panela e uma caneca. E ele
ali, mexendo no pênis (enorme, teso) freneticamente. A mulher que ela era, a voyeur frustrada, poderia ter ficado ali, embevecida, admirada, extasiada, esperando pelo gozo do homem. Mas de
repente sentiu uma grande tristeza, uma vontade louca de sair daquele lugar, de nunca ter visto aquela cena. Indagava-se sobre o que pensaria naquele momento o homem sem
rosto. Quem era ele? O que o teria feito perder totalmente a censura?
E pensava em como seria bom não ter censura. Como ela gostaria também, de vez em quando, de gritar na rua, falar alto, andar descalça, xingar todo mundo que merecesse, sentar no meio da praça e se abrir ao sol, como fazem os franceses, sem pudor. Sem lembrar
que os outros poderiam estar pensando ou dizendo que era louca. Ser dona de si mesma, do seu nariz, das suas vontades.
O mendigo, em princípio, pareceu alguém que estava ali por acaso, apenas para satisfazer suas necessidades adormecidas de voyeur. Mas logo depois percebeu que ele estava ali, talvez, para mostrar o quanto é mesquinha a vida. O quanto não nos preocupamos ou nos responsabilizamos pelos outros. Não, ela não era madre Tereza, tampouco a boa samaritana. Mas pensava em
quão pouco fazia pelo próximo. Aquele homem comum estava, apenas e tão somente, executando uma necessidade básica, como comer ou evacuar.
E imaginou quantos haviam passado pela janela em que ficara tentando ver uma coisa que não
via (exatamente para escapar da realidade dura), ali mesmo, diante do seu nariz
,sem que ao menos tivesse percebido. Quantos pediram por socorro sem que tivesse ouvido? Quantos pediram ajuda e ela, cega, negara?
Costuma-se dizer que é um comportamento típico e errado do povo brasileiro prestar atenção na vida dos
outros em vez de cuidar da própria. Mas para ela, agora, a percepção era a de
que o que acontece é exatamente o contrário. Ninguém presta atenção no que
acontece lá fora. Lá, do outro lado da nossa janela egoísta.
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