PALHAÇO
Fernando Zocca

Sem desejar tecer considerações sobre os urubus que só se alimentam quando há morte, descemos naquele dia, a Ulhôa Cintra em direção à rua do Porto. Comigo vinham outros dois moleques, que aproveitando os longos dias de vadiagem, os gastavam nas traquinagens pelas redondezas. 

O mais velho dos irmãos que me seguia tinha acabado de abandonar o ginásio e seu pai, fulo de raiva, atribuía a mim as más influências ao seu rebento.

Eu não tinha aquela capacidade toda para intervir nas decisões de quem quer que fosse, por isso não me apoquentei com as insinuações maldosas.

Caminhávamos livres, alegres e soltos. Eu pensava no despotismo ignorante dos mais velhos que utilizavam as idéias e conceitos dúbios a fim de criar opiniões negativas sobre quem não gostavam. 

Quando chegamos à beira do rio, na altura do trampolim, avistamos um aglomerado de pessoas que circundavam algo jazido ao solo. Havia um carro funerário, uma viatura dos bombeiros e alguns outros da polícia civil. Tratava-se do corpo de um homem que perecera afogado alguns dias antes. Ele brincara com sua bóia e descera, despreocupado, a correnteza, ao lado duma centena de outros colegas. E agora estava ali, estendido ao solo, completamente roxo. Os lábios, pálpebras, orelhas e parte do rosto foram devorados pelos peixes. O ventre, estufado, apresentava ferimentos visíveis abaixo do umbigo. As discussões sobre quem seriam os responsáveis por aquela morte pararam exatamente no consenso de que só o falecido seria o causador da sua própria e ingrata sorte.

Rodeávamos a aglomeração, quando repentinamente, surgiu no seu fusca vermelho, zero bala, modelo 1969, cheirando a novo, o pai dos garotos. Com o semblante sóbrio, carregado, e encostando o carro ao meio fio, chamou-nos para sairmos imediatamente daquele local.

Durante o trajeto nos contou que ouvira a notícia do afogamento no rádio do carro, e que ficara preocupado conosco. Disse-nos, em tom grave, que deveríamos dar outro rumo à vida; que deveríamos estudar, largar a anomia e deixarmos a safadagem para os mais novos. 

Realmente, nos dias subseqüentes, quando os fui chamar soube que ambos estavam estudando na biblioteca pública.

Sem titubeio para lá me dirigi. Ao chegar, pensava em ver os dois garotos aplicados aos estudos. Mas ambos, como a maioria dos adolescentes que ali estavam pareciam imersos num clima de algazarra e zombaria. Aguilhoavam um sujeito a quem, á sorrelfa, chamavam de louco. Hostilizavam-no à lonjura valendo-se da voz monocórdia, monótona, uniforme e repetitiva. Era agressão verbal, furtiva e sorrateira. Servia, quem sabe, para auto-afirmação, baixar a tensão provocada pela presença do outro e sem dúvida impelir a vítima do local. O que eles faziam, naqueles momentos, viria a saber anos mais tarde, era a chamada "influência à distância", que os pobres loucos, internados nos manicômios, relatavam aos seus médicos, incrédulos e condolentes. 

Sentado ali, junto aos meninos,no meu posto de observação, "janelava" o ambiente e pensava sobre qual teria sido o delito do indigitado. Tinha também a curiosidade por conhecer o tribunal que o havia condenado à execração.

Com certeza aquele tipo de constrangimento não era novidade sobre a terra, e decerto poderia ser ubíquo, dependendo da coesão dos credores, e a gravidade das dívidas. Mas que era desumano, lá isso era. Era demoníaco e não aparentava ser ato de quem se dizia Cristão.

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