SAUDADE
Carlos C. Alberts

Vingança. Revanche. Ódio. As feições contorcidas denunciavam o que lhe ia na mente.

Estivera de castigo.

Com quarenta e cinco anos, dois doutorados, várias chefias e consultorias, membro permanente do Conselho Gestor da Ipá-Ti-uá (do qual já fora presidente duas vezes).

E brasileiro. Ou seja, originário do país com mais empresas e investimentos diretos no Projeto.

De castigo. E todo mundo tinha percebido.

Seu nome não estava entre os indicados para o plantão do posto, na doca de atracação. Mais de cinco semanas fora da escala.

E a norma era clara: "É proibida a entrada no posto da doca de qualquer indivíduo que não esteja na escala de plantão".

Contrariar esta norma podia significar demissão sumária. Até mesmo para ele. A disciplina é o único aspecto inquestionável no espaço. Dela depende sua vida. A vida de outros. E o destino do investimento que milhões de pessoas, durante décadas, ajudaram a pagar.

No caso da Ipá-Ti-uá, a estação orbital brasileira, um ato de indisciplina podia por em risco o destino de toda uma nação e sua cultura.

Problemas na estação ameaçariam a última chance do Brasil de sair da corda bamba entre o paraíso dos países ricos e o abismo onde se encontravam os miseráveis. Era um castigo cruel.

Depois de dois anos e meio em órbita geo-estacionaria, a proibição de permanecer na doca causava depressão, angústia, pesadelos, desorientação, dores de cabeça e distúrbios neurológicos variados.

Mas o sofrimento estava chegando ao fim.

Finalmente caminhava em direção ao pequeno recinto. Nunca alguém havia ficado fora da escala antes.

O posto da doca era uma cabine de um metro quadrado de área por dois metros de altura, com a única cadeira não ergométrica da estação (devido a falta de espaço). E repleta de controles, manivelas, joysticks, telas. Onde se ficava de plantão esperando os cargueiros vindos de Alcântara ou de Luna 2.

Apertado. Muito apertado.

Mesmo assim, era um dos dois locais mais procurados da nave. O outro era a Capela. E fora lá que seus problemas começaram.

Uma Capela Ecumênica. Sem qualquer símbolo religioso. Pequena, também. Mas comparada ao posto da doca, era bem ampla.

No fim do século 21, com a tripulação composta principalmente de cientistas, eram raríssimos os que não se declaravam ateus ou, no máximo, agnósticos. Mesmo assim, a procura era grande e turnos de meia hora foram estabelecidos como tempo máximo para cada "fiel" se reencontrar com sua "fé".

E precisavam usar o espaço em duplas. De outra forma, devido ao tamanho da tripulação, levaria muito tempo até a próxima volta a ela. Assim, os dois tripulantes escalados em cada horário, deviam pertencer à mesma religião.

Para uma tripulação de ateus, o número de místicos era surpreendente. Todo mundo.

E mais. Uma febre espiritual parecia ter eclodido a bordo. Religião era um dos assuntos prediletos durante as folgas. E havia constantes conversões. Judeus se tornavam cristãos. Espíritas abraçavam as palavras de Maomé. Budistas descobriam as verdades do Candomblé. 

O segredo? Simples. A Capela era o único local da estação orbital onde não havia uma única câmera, microfone ou qualquer aparelho que denunciasse quem estava lá ou o que estava fazendo. Privacidade.

Rapidamente o espaço da Capela encontrou uma função muito mais mundana que rezas ou contrições. Fora lá que conhecera os mistérios da deusa do osso, uma divindade de populações isoladas da Groelândia.

E quem o iniciara nos ritos fora a ex-Presidente do Conselho. Uma norueguesa, alta, loiríssima, escultural, com um rosto tão belo que chegara a emocioná-lo. Muito inteligente, culta, divertida, profunda (também em suas reflexões). Enfim, com uma série quase interminável de qualidades.

Mas com um defeito. Ciumenta.

Percebera este lado dela enquanto conversavam juntinhos na biblioteca.

As mãos da mulher, frias e longas, que penetravam os bolsos de seu uniforme para carícias mais picantes, pararam de repente.

"O que este amuleto de fertilidade Maçai está fazendo no seu bolso?"

A paralisia e o silêncio, equivalentes aos do menino que é pego mexendo na bolsa da mãe, foram as únicas respostas.

Ela entendeu na hora.

Aquele amuleto só poderia ter sido dado pela linda engenheira balinesa. A única que conhecia as religiões do norte e do leste da África. Com quem tinha combinado um encontro na Capela. Quase todos haviam se especializado em alguma religião exótica. Ele, por exemplo, entendia os detalhes que os xamãs aborígines da Austrália usavam em suas cerimônias.

Por isso, o castigo.

Como Presidente, ela o obrigara a ficar quase um mês e meio sem turno no posto da doca. Somente agora estava de volta. Porque a presidência rotativa do Conselho chegara a ele novamente. Mas, apesar do castigo, até aquele ponto, não queria mal a sua antecessora. Ela fizera aquilo por ciúmes.

Sentira até um pouco de vaidade. Uma mulher daquelas perder a racionalidade por sua causa.

Mas alguma coisa estava errada.

Não existe nenhuma imagem daquele amuleto em qualquer fonte disponível na nave. A engenheira o havia entalhado, ela mesma, em um bastão de fibra de carbono, baseada em sua própria concepção da religião dos Maçai. Era único e ela o usara, sempre, dentro da calcinha, conforme a tradição.

Finalmente ele compreendia a verdade. A ex-Presidente o castigara por ciúmes, é certo.

Mas não por ele.

E sim pela jovem engenheira de Bali, conhecedora dos rituais religiosos (e outros nem tanto) do povo Maçai.

Entrou na cabine do posto da doca de atracação e sentou-se na desconfortável cadeira. Quem olhasse para o monitor que transmitia as imagens geradas lá dentro, o veria numa atitude diferente. A vingança teria que esperar. A face contraída deu lugar à paz.

Encontrara aquilo pelo qual sua mente e seu corpo ansiavam tão doloridamente. Uma lágrima escorreu por seu rosto. Quem visse os movimentos silenciosos de seus lábios e não o conhecesse bem, diria que estava rezando. O motivo da metamorfose estava a sua frente.

A única escotilha em toda a nave voltada para o Planeta Terra.

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