DOIDO
DE PEDRA
Beto Muniz
De
repente eu abro os olhos e não estou mais no alto da jaqueira observando
os movimentos insanos do Velho Doido. O Sr. Victor.
Eu morei na rua Curitiba de 1942, época em que a guerra estava explodindo e o governo brasileiro dava mostras de simpatia para com os alemães, até 1953. Ao contrário do temor do meu avô, passamos incólumes pela guerra. Segundo meu tio, o primogênito, o apoio aos aliados era mais que esperado e os soldados enviados para a Itália, que voltaram como heróis de uma só batalha, havia sido uma retaliação imposta pelos americanos por conta de o Brasil ter flertado com os alemães. Ainda segundo meu tio, essa participação efetiva na guerra pode ser considerada um castigo pequeno, e a simpatia inicial aos alemães só não descambou para sanções mais pesadas porque entre os países aliados já era notória a neutralidade brasileira diante de qualquer questão armada. O Nono concordava e acrescentava aliviado: "O Brasil é constituído por um povo avesso a pólvora. Se as guerras ainda fossem decididas com espadas, talvez essa gente se animasse a uma refrega" - e completava com uma estrondosa gargalhada que lhe balançava a enorme pança. A casa era herança de minha avó paterna e com o início da guerra meu avô deixou nossas terras, na região noroeste do estado, aos cuidados de meeiros e trouxe os três filhos mais minha mãe e a viúva de seu filho caçula para a segurança da cidade grande. Nossa descendência ítalo-judaica poderia passar desapercebida em São Paulo, mas na região de São José do Rio Preto era visível a crença de meus antepassados. Hoje eu sei que não houve ameaça alguma contra nossa família, mas meu nono era um homem precavido e, qual galinha cuidadosa, arrebanhou filhos, netos, bisnetos, genros e noras todos debaixo de suas asas. Eu não convivia bem com primos e primas. Era avesso a gente não por ser anti-social, mas porque desde que papai fora fulminado pela picada duma cobra coral, mamãe passara a cuidar dos assuntos do sítio e destinava bem pouco do seu tempo para assuntos sociais. Ela e eu nos apegamos de tal maneira que nos bastávamos e qualquer pessoa - mesmo o nono - que tentasse se aproximar era visto como um intruso. A ordem de abandonar nossa casa e vir para a capital foi desobedecida por duas vezes. Na terceira, dois tios chegaram com uma carroça e praticamente arrastaram-nos. Um tio ficou acertando detalhes com empregados e eu me vi dentro do trem sem tempo de me despedir dos únicos amigos, a professora da escola rural e Martins, um aluno órfão de pai como eu. Nós nos entendíamos. Com a professora Vilma eu tinha vínculos de gratidão. Ela havia se empenhando diante da minha curiosidade em aprender a ler. Eu considerava que fora sua dedicação que me possibilitara entender as histórias dos livros guardados num velho baú, única herança de papai que me interessava. No
casarão da rua Curitiba havia uma bela biblioteca, meu bisavô
tinha gosto pela leitura e pintura, mas em princípio não
tive vontade nem liberdade para ler qualquer daqueles volumes. O nono,
atual dono de tudo, tinha um ar bonachão, mas eu guardava estranho
rancor, culpando-o pela nossa saída brusca do sítio. Passava
horas mudo, sentado à beira da avenida Itororó, que hoje
se chama Avenida 23 de Maio em homenagem a eclosão da revolução
de 1932, ou diante da enorme janela que dava para o parque Ibirapuera.
Eu nada olhava de interessante, apenas fixava o telhado dum galpão
de madeira no canto direito do parque. A construção cinzenta
destoava na paisagem verde e eu formulava teorias que justificassem aquele
enorme barracão plantado no parque. Era meu passatempo nas tardes
melancólicas. Mamãe também não parecia feliz
com a resolução do nono e tentava amenizar nossos dias me
dando carinho redobrado. Foi numa dessas andanças pelo parque que eu cheguei bem perto do galpão. Lá dentro um barulho estranho e contínuo. Parecia que alguém quebrava pedras, mas não parecia uma fábrica ou oficina com operários. O local pareceria abandonado não fossem aquelas batidas cadenciadas e constantes. A parede era extremamente alta, penso que tinha para mais de dez metros de altura, e as tábuas eram longas, nuas, sem pinturas e sem ripas tapando as frestas. Afetadas pelas intempéries, a madeira adquirira um tom cinza azulado e rachaduras. Algumas tábuas estavam envergadas, transformando as antigas pranchas retas em côncavos e convexos compridos pesos aos travessões e caibros por enormes pregos enferrujados. Em parte da parede as tábuas estavam seguras apenas pelos pregos da parte superior. A parte inferior, rente ao chão, estava desgastada pela ação do tempo. Analisando a construção tosca e ao mesmo tempo rígida, a curiosidade aumentou. Afastei uma das tábuas soltas e bisbilhotei pela fresta. Vi apenas um amontoado de blocos de pedras quadradas que formavam um enorme bloco. Parte dessas pedras tomava a forma humana e, pareceu-me, um homem a cavalo. Enfiei a cara pela fresta querendo ver mais e nos costados do enorme cavalo enxerguei um velho, parecido com o nono, só que mais magro e vestindo uma capa longa parecida com os açougueiros da Bela Vista, que batia na pedra com uma marretinha. Antes que eu pudesse montar o quebra-cabeças que em fração de minutos se formara em minha mente, o velho que martelava na pedra me viu e soltou um urro medonho. Meu sangue gelou. Soltei a tábua que resvalou rápido demais e bateu em meu rosto me aturdindo mais ainda. Saí correndo rumo ao meu tio que já me procurava para entrar numa brincadeira de pega-pega com meus primos. Não contei pra ninguém o ocorrido, com medo de ser punido. Sobre a marca de pancada na face, disse que havia caído no parque e não fui importunado com mais perguntas. À noite sonhei que estava olhando o galpão pela enorme janela da sala e o velho maluco que passava os dias batendo pedra saltou de repente e começou a bater com a marretinha no meu rosto. Acordei gelado e não consegui dormir. Fiquei meses sem coragem de me aproximar do galpão. Apesar de haver quase dois anos que morávamos na rua Curitiba, eu ainda cultivava o mutismo inicial. Falava apenas o essencial e meu tio Jeremias, repleto de paciência, inventava maneiras e brincadeiras, tentando romper a barreira entre eu e o mundo. Lembro que uma vez fomos visitar a garagem de bondes na vila Mariana, e a imagem de algumas dezenas de bondes enfileirados no final duma tarde de domingo ainda está na memória, porém sem muitos detalhes. Bem mais claro está o dia em que saímos cedo, com apetrechos de pesca, um embornal cheio de bilocas azuis e um estilingue cuidadosamente trabalhado. Só ele e eu. Estranhei a ausência do primo Oséias, que era quase da minha idade, mas mantive silêncio. Andamos por muito tempo, passamos por dentro do parque, ao lado do enorme galpão onde ouvi as batidas da marretinha na pedra. Mentalmente visualizei o velho doido invadindo o janelão de casa com uma marreta nas mãoes e estremeci de medo. Atravessei na frente do meu tio e postei-me ao seu lado deixando que ele ficasse entre o galpão e eu. Saímos do parque e seguimos rumo as terras do General Bibi, um loteamento que até hoje é chamado de Itaim Bibi. Margeamos o córrego do Sapateiro, atual avenida Juscelino Kubitschek, e fomos em direção ao rio Pinheiros. Antes de chegar ao rio, viramos à esquerda num entroncamento e seguimos por uma rua margeada de areia. Cruzamos com vários carroceiros transportando areia de construção. As carroças seguiam mansamente deixando escorrer fios de areia que iam se acumulando na beira da estradinha. Próximo de onde hoje é a Rua Ministro Jesuíno Cardoso, meu tio apontou uma chácara e disse que ali era a casa do Amácio Mazzaropi, um comediante de circo que estava ficando famoso no rádio fazendo uma imitação de caipira. Eu nunca ouvira falar dele e por isso mesmo guardei a informação sem entusiasmo algum. Descemos menos de um quilometro e a vegetação de árvores e touceiras era invadida pelas águas. Mais parecia um brejo de águas limpas. O fundo era arenoso e por isso as águas eram límpidas. Quando a água deu no joelho do meu tio, ele parou, improvisou um jirau sobre a forquilha duma árvore e me botou ali. Estava animado enquanto preparava as iscas. Não lembro todo o procedimento adotado por ele, lembro apenas que eu estava cansado de andar e ainda não abrira a boca nem para reclamar da sede que sentia. Titio lançou a linha com anzol e isca e mostrou como eu deveria fazer se sentisse algum puxão, como se eu nunca tivesse pescado em minha vida. Eu o achei um tolo, mas permaneci calado, concentrado no jogo de pescar. Eu gostava de pescar. Durante um tempo pegamos pequenos peixes e duas traíras pequenas. Nada especial. Quando estava para desistir do meu mutismo e pedir para ir embora, senti que um peixe beliscava a isca e armei a fisga. Quando a linha correu eu dei o bote e puxei. Senti o peso do peixe crescer e flexionar o caniço entre minhas mãos. A linha se esticou toda e o bambu dobrou como se fosse quebrar. Pego desprevenido pela força do peixe, eu levei um tranco e fiquei assustado, mas não larguei a vara. Sentado sobre o jirau de maneira indolente, fiquei momentaneamente sem apoio para firmar o corpo e brigar com o peixe fisgado. Passei o pé por sobre o tronco onde estava sentado e pulei n'água. Meu tio, até então absorto na própria pescaria, assustou-se, pensando que eu havia caído, mas vendo que eu firmava os pés e, mesmo com água quase na cintura, mantinha o corpo arqueado para trás com a perna direita à frente e os braços firmes na briga, acalmou-se e quis me ajudar a tirar o peixe. Gritei que dava conta sozinho como que expulsando titio de perto de mim. Ele calou e passou a apreciar a luta. Após alguns minutos que me pareceram horas, percebi que não teria forças para vencer o peixe e tirá-lo da água como os que pescara até então. Porém, não queria me dar por vencido após rechaçar ajuda, e tampouco deixar meu troféu fugir. Decidido, comecei a sair de dentro d'água andando de costas e arrastando o danado como se travasse um cabo de guerra. Fui ganhando terreno e até comecei a correr rumo a rua de areia. Quando dei de cara com um cavalo puxando uma carroça vazia, percebi que estava fora da água. Puxei o caniço palmo a palmo, e a linha do mesmo modo, até que vi um enorme peixe de barriga amarela que já não oferecia resistência sobre a areia. Titio ria alto e apesar de debochar da estratégica retirada, me parabenizava pelo peixe. Realmente era enorme para um menino de dez anos. Eu havia pescado um lobó. Devido ao lago ser arenoso, a velha traíra era mais clara que os lobós da região onde eu morava e por isso eu não identificara de imediato a espécie pescada. Voltei para casa com o espírito leve. Por algum motivo o peixe havia quebrado a barreira de gelo entre meu tio e eu. No caminho de volta ele me deu o embornal de bilocas e o estilingue. Autorizou-me a arremessar as bolinhas de vidros nas árvores do caminho, mas eu achei um desperdício atirar bolinhas de gude no mato. Procurei por pedregulhos mas só encontrei torrões. Acabei por lançar uma dezena de bilocas em alvos imóveis até que encontrei um pé de mamonas com cachos formados. Munição à vontade, que me fez esquecer o cansaço da longa caminhada de volta. Quando percebi já estávamos ao lado do barracão montado no canto do parque. Lá de dentro não vinha o som característico de alguém quebrando pedras. Pensei em perguntar pro meu tio o que significava aquele galpão plantado no parque e quase estava abrindo a boca quando o velho doido saiu por uma porta lateral. Fiquei mudo, com o coração disparado e as pernas bambas. O velho me encarou. Tinha um ar severo, usava calças escuras largas, camisas brancas, suspensórios na mesma tonalidade das calças e uma boina. Estava coberto de poeira branca e ficou nos olhando como se a qualquer momento fosse urrar comigo novamente. Não respondeu ao aceno mudo do meu tio. Apertei o passo e colei meu corpo no tio Jeremias, que nem percebeu o que se passava comigo. Foi uma festa a nossa volta ao casarão. Pela primeira vez fui convidado a sentar-me à mesa junto com os adultos. Mamãe até sorriu quando foi intimada a cortar e servir-me do peixe que eu pescara. O nono era mesmo muito sábio - considerei. Assim que ficou a par do meu feito, havia corrido até a peixaria da vila Mariana com um dos meus tios. Do enorme janelão com vistas para o galpão de madeira montado no canto direito do parque do Ibirapuera, vi quando ele e meu tio chegavam. Cada qual com duas enormes traíras embrulhadas em jornal. Todos comeram peixe como se fosse do que eu havia pescado. A partir daquela noite eu fui me abrindo para os afetos familiares, passei a sorrir com maior freqüência e a ler os livros do nono. Nas tardes de sol eu subia pela jaqueira bem em frente ao janelão da sala e ficava sentado na forquilha assuntando os lados do barracão, atento aos movimentos e ao velho doido de pedra. Quando a guerra terminou e mamãe voltou para o sítio, eu já sabia que o nome do velho era Victor. O Nono decidiu não voltar para o interior e como eu estava muito bem nos estudos, ficou decidido, à minha revelia, que era imprescindível terminá-los. Mamãe sonhava com um filho bacharel e foi-se com algumas lágrimas. Eu fiquei. Aos quatorze anos eu ainda tinha medo do velho Victor e, estranhamente, um fascínio fazia com que eu vigiasse o maluco de cima da jaqueira enquanto lia um livro. Sabia de seus horários, de seus humores. Por diversas vezes eu vi uma gente que parecia importante visitá-lo. Vinham de carro. Durante um tempo o velho deixou de vir ao barracão e eu pensei que ele havia viajado, mas soube bem depois que ele estivera ausente devido a uma queda feia. Caiu dos andaimes enquanto trabalhava. Aos dezesseis anos ganhei um padrasto e perdi totalmente a vontade de voltar a morar com mamãe e, por receio de magoá-la com a verdade, transformei a intenção de me tornar bacharel em objetivo. Minha dedicação aos estudos era louvada e incentivada por todos, para felicidade de mamãe. No meu terceiro ano na faculdade de direito o galpão foi removido. Antes de completar o curso perdi meu nono, que se transformara em pai. No ano seguinte eu soube da morte do Sr. Victor e, sinceramente, senti um alívio no peito, já que nunca conseguira vencer o medo que tinha do velho doido que passou anos batendo pedra no enorme galpão montado ali no canto direito do parque do Ibirapuera. O tempo passou, o casarão na rua Curitiba foi vendido, eu fiz sucesso na advocacia e voltei para o bairro da minha adolescência. Comprei um apartamento com vistas para o parque. Debruçado na janela eu fecho os olhos e a sensação que tenho é que estou de volta ao casarão do nono, que estou na forquilha da jaqueira observando o velho doido. De repente eu abro os olhos e não estou mais no alto da jaqueira observando os movimentos do Sr. Victor Brecheret. Diante de mim não há galpão, há apenas o parque e as pedras que tomaram as formas de figuras humanas, cavalos e barco. O Monumento às Bandeiras. Com aproximadamente trinta metros de comprimento e uns seis metros de altura, a obra é considerada uma das maiores esculturas do mundo e um ponto turístico da cidade de São Paulo. Durante nove anos eu observei com receio o barracão de madeira e escutei com curiosidade os golpes que moldavam os blocos de granito. Hoje, após cinqüenta e um anos da derrubada do barracão, contemplo a obra de Victor Brecheret, o velho doido de minhas reminiscências, e as lembranças da adolescência vão retornando quadro a quadro como uma obra sendo esculpida na pedra, entalhe por entalhe, marretada a marretada. |