DA JANELA LATERAL
Argento

 
Acorda a cidade. Os bem-te-vis espalham-se pelos arredores seu canto matinal. Dizem que o galo desperta-nos todos os dias, pois é, só pra contrariar os passarinhos sempre cantavam fazendo acordar as pessoas daquele pequenino bairro. Algumas vezes, um ou outro, dava o ar de sua graça ao pousar na sua janela. 

A rotina começava a ser redesenhada a cada início de dia. Tomava banho, fazia a barba, engolia o café, passava os olhos rapidamente nas notícias do jornal e dava um brilho nos dentes. Ah, já ia me esquecendo, separava o dinheiro da passagem e tinha também uma conversinha com Deus. Tudo isso seguido de um beijo na testa dos seus filhos e outro diferente na patroa. 

Ao entrar no ônibus observava pela janela a vida que corria lá fora. Paisagem que embora com cenário já conhecido, sempre tinha alguns personagens diferentes a cada dia. Nessa oportunidade flagrou uma esposa louca correndo atrás de sua vítima empunhando uma faca. E o pseudo marido corria apavorado tentando salvar a pele. Devido a velocidade do lotação infelizmente não pode ver o desfecho daquela tragédia. Ficou observando a cena sumir vagarosamente por aquela janela. 

Pela janela do ônibus via crianças indo para a escola, pessoas correndo para o trabalho, garis que limpam as ruas, carros engarrafados no meio da confusão cotidiana, camelôs tentando ganhar o pão de cada dia, homens pedindo esmola, enfim uma sinfonia triste repetida mecanicamente durante o trajeto para o escritório. 

Pela janela da alma via sonhos que se perdiam, amores não correspondidos, beijos fugitivos, perda de alegria, noites de insônia, brigas dos caminhos que tinha de seguir e dos que queria poder traçar. Planejava o futuro embora não conseguisse sair do atoleiro do passado. Vendia uma imagem bonita mas por dentro carregava o desespero da vida que se esvaía lentamente pelos dedos. 

Pela fresta da janela procurava sentido no vento que vinha roubar-lhe o trapo de felicidade que a esperança teimava em manter. Da janela, da janela lateral onde vira sua princesa fugir. Da janela central do seu coração onde ficava a perdê-la até a janela lateral do mundo onde iria viver esperando por uma nova chance de ser feliz. Dessa janela esperava o cair de mais uma tarde. E lá bem no meio do nada vagava num outro transporte coletivo esperando mais uma noite com sua família, mais uma noite de dor e angústia. Faltava-lhe coragem de abrir a janela do apartamento e deixar-se cair. 
 

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