AUTO-RETRATO DA
GUERRA
Rita Alves
Querida Anna,
Escureceu. A noite aqui é tão fria, um alívio para o calor sufocante que dura o dia inteiro. As tempestades de areia são cruéis.
Meu coração está triste, minha família e eu teremos que abandonar nossa casa e com ela o pouco que temos. Ficarão ali lembranças amargas para serem bombardeadas e destruídas impiedosamente. Provavelmente encontraremos ruínas quando voltarmos. Lágrimas rolam pela minha face agora. Derramo lágrimas pela guerra e pela ditadura cruel que faz todos sofrerem e destrói o que há de mais belo, a liberdade.
Uma névoa de ansiedade toma conta de mim. Sou uma mulher e temo ser violentada. Na guerra há perigos inimagináveis.
Tenho medo de perder meu pai e meu irmão que insistem em servir de escudo humano para proteger o seu amado país. Minha mãe chora e o meu coração parte em milhares de pedaços como os estilhaços resultantes de algum bombardeio.
As ruas estão desertas, há um estranho silêncio. As lojas estão todas fechadas por medo de saques. Certamente depois de tudo haverá a guerra civil: de curdos contra turcomanos, de sunitas contra curdos, xiitas contra sunitas, se comportando de forma primitiva e achando que estão sendo homens de verdade.
Compramos alguns alimentos para estocar na nossa morada temporária, farinha para fazer pão, biscoitos e algumas frutas secas para matar a fome quando ela vier nos assombrar lembrando sempre como somos frágeis e dependentes.
Às vezes penso se vale à pena viver assim, sem liberdade num país hostil com seus homens sem escrúpulos que acreditam estar fazendo tudo pela "jihad". Penso na morte como uma mão carinhosa me afagando os cabelos...
Pra mim tudo não passa de loucura e falta de amor. O amor que os fanáticos pregam é tão confuso que muitas vezes não sei mais o que é isso. Estou perdida. Quero ter esperanças, mas ela já foi embora há muito tempo e levou meu amor com ela. A outra guerra, que aconteceu anos atrás, levou o homem que amei secretamente desde a infância.
Hoje tenho 32 anos e muitas mágoas. Meus cabelos são longos e negros. Os meus olhos castanhos perderam o brilho. Minha pele é queimada de sol e cheia de rugas tão profundas quanto a feridas da minha alma. Será que dia elas irão cicatrizar ou abrirão outras? Só o tempo vai dizer.
Tem algo que certamente me faria feliz: ser mãe. Isso traria de volta as minhas esperanças e o brilho dos meus olhos. Mas quando me lembro do mundo em que vivo, tenho medo de que mais tarde minha criança se transforme num monstro ou em alguém triste como eu. Não suportaria vê-la sofrendo e não me perdoaria jamais.
Eu quero ser livre, Anna! E quero a paz!
Todos perdem com a guerra. Eu perco as esperanças, milhares perdem a vida, milhões guardam traumas para o resto de suas vidas.
A guerra não destrói apenas os seres humanos, ela vai destruir também tesouros que contam o início da civilização humana. A guerra vai promover o ódio e mais ataques terroristas acontecerão. Os homens daqui não perdoarão a terra manchada pelo sangue derramado das suas famílias.
Escrevo pra você minha amiga para desabafar. Tem um grito sufocado na minha garganta querendo dizer a todos o que sinto, o que acho. Mas aqui no Oriente a mulher não tem voz.
Espero um dia conhecê-la e dessa forma, talvez, eu saiba um pouco do que é ser livre. Estarei sempre com você. Escreverei novamente assim que tudo terminar. E se você não receber nenhuma mensagem após a guerra ter acabado, não fique triste. Não esquecerei de você e pedirei a Allah, Deus, Jesus, Maomé, aos Deuses, Anjos ou qualquer nome dado ao Sagrado para que a abençoe por ter sido o meu refúgio.
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