A SALVAÇÃO DE JOÃO
Ricardo Augusto Santos

João Cláudio Berlioz, sujeitinho pouca coisa, sabia que seu sobrenome era importante. Não imaginava de onde, nem porque; carregava esta certeza, devido ao conhecimento da existência de uma rua com seu sobrenome no Alto de Pinheiros. Informação suficiente para torná-lo nobre. Demasiadamente nobre, inclusive, para dividir o mesmo documento com João Cláudio. Alterou seu nome para Jean Claude. Tornou-se Jean Claude Berlioz. 

Jean era dado às artes. Não que fosse realmente competente para isso. Apenas tentava. Isso quem diz sou eu pois, em sua concepção, achava-se o máximo! Verdadeiro supra-sumo do ativismo cultural. 

Já havia tentado inserções nos mais variados ramos artísticos: teatro, literatura, cinema, escultura e muitos outros. Falhara em todos eles. O motivo era esse, segundo dizia:

- Não sabem reconhecer o meu valor, os ignorantes! Sou mesmo um gênio incompreendido! Mártir da revolução sócio-cultural!

Não era nada disso; mas cria em suas palavras como um filho crê no amor da mãe.

Quando ainda era João Cláudio, casou-se com a bela Cristina; uma loiraça de um metro e oitenta, corpo escultural e boca insinuante. De mulherão à esposa; de esposa à mãe de sua filha; nunca perdeu os encantos a dedicada mulher que dera à João Cláudio a pequenina Eleonora.

João Cláudio só podia ser pura felicidade! Mas Jean Claude, não.

Jean, nos últimos tempos, enveredara para uma nova paixão: a Pintura.

Prometia:

- Meu brilho ofuscará na história da arte nomes inexpressivos como Picasso, Van Gogh e Reimbrant!!

Sua arrogância e obstinação, faziam com que ficasse dias enfurnado dentro de seu "Atelier"; nome recentemente dado à garagem que, invadida por cavaletes, telas, tintas e litros de conhaque inspiradores, foi obrigada a desabrigar o carro da família.

Talvez seja importante frisar o fato de Jean nunca ter, realmente, trabalhado na vida. Em sua empreitada na busca de fama nos canais da arte, despendera toda a herança deixada por seus pais. Como conseqüêencia, avançava de maneira considerável sobre o mirrado salário de professora que, a muito custo, Cristina colocava na casa.

Ora, para que se preocupar? O dinheiro era bem gasto na compra dos materiais que viabilizariam o surgimento de sua obra-prima: seu "AUTO-RETRATO". A tela que o envolveria em glória e fortuna.

Já se iam seis meses de empenho árduo de Jean Claude em pintar sua própria vaidade. Cristina e Eleonora empenhavam-se mais ainda para conterem as lágrimas que brotavam pela falta de amor vertical e horizontal do marido, pela ausência do pai e pelo caminho ébrio que trilhava Jean Claude.

Passou-se um ano; o carro foi vendido. Um ano e meio; cortes na alimentação. Aos dois anos de distância total, a esposa mal lembrava da fisionomia de Jean. Eleonora, que era muito inteligente (Meu Deus, o que perdia nosso artista!), desistira e passara a chamar Cristina de Pãe; numa brilhante alusão da personificação de dois entes na mesma pessoa. Aguardavam, desta maneira, a conclusão da obra que seria, verdadeiramente, a salvação da família.

Foi em uma manhã de sábado que ecoou pela casa, como um trovão, o brado:

- TERMINEI!

Mãe e filha correram para a garagem e encontraram Jean, de costas para o quadro, com sorriso franco estampado no rosto e ótima aparência. Quando as viu, correu a abraçá-las e beijá-las compulsivamente como nunca fizera; como se fosse o primeiro ou último contato entre eles.
Quando as duas foram em direção ao quadro para contemplá-lo, foram puxadas pelo braço.

- O que foi Jean?

- Me chame de João.

- ...?

- Vamos dar uma volta?

- E o quadro? Não quer que o vejamos?

- Não é importante. Vamos, eu quero matar as saudades de vocês.

E saíram.

Jean, perplexo, observava tudo. Como teria parado ali? Tudo que se lembrava era da última pincelada e então: ZUPT, estava lá; preso no seu próprio quadro.

Pelos dois furos à sua frente, que julgou tratarem-se dos olhos da pintura, observou o estranho homem que ganhava a rua com sua família. Quis chorar.

O passeio foi só a primeira de muitas atitudes que João passou a tomar. Não mais interessou-se pelas artes; arrumou um ótimo emprego; não chegava nem perto de bebidas alcoólicas; passava horas brincando com a doce Eleonora (e ela o adorava). Tornara-se, da noite para o dia, um amante maravilhoso para Cristina, que há muito não sabia o que era prazer a dois. 

Tudo transcorria bem naquela casa. 

Com exceção da garagem.

Lá, em meio ao abandono das telas propositadamente esquecidas pela família (lembranças de um tempo ruim), Jean amaldiçoava o ocorrido. Buscava agora, naquela outra dimensão, uma maneira de avisar sua família que aquele João era um impostor, uma fraude. Espécie de espectro revelado quando da pintura desse maldito AUTO-RETRATO.

Como passava os dias em andanças exploradoras, Jean descobriu, depois de certo tempo, a íntima relação entre a dimensão que lhe servia de moradia e o mundo dos sonhos. Sob a égide da luz de uma boa idéia, acreditou ser essa a sua chance de entrar em contato com sua família. 

Depois de breve aprendizado, já conhecedor da arte de manipulação dos sonhos no mundo real, Jean, aproveitando-se do fato de encontrarem-se dormindo esposa e filha, enviou-lhes a seguinte mensagem:

"Queridas, aqui quem fala é Jean; vocês tem que acreditar. O homem a quem vocês tratam como esposo e pai é, na verdade, um impostor. Eu, o verdadeiro Jean, encontro-me preso ao AUTO-RETRATO que pintei. A única maneira de libertar-me é fazendo com que este espectro olhe diretamente para os olhos de minha figura no quadro. Só assim a troca poderá ser feita, devolvendo as coisas à normalidade. Aguardo ansiosamente.
Com amor;
Jean"

Quando acordaram, Cristina e Eleonora correram desesperadamente para a garagem. Esbaforidas, subiram com o quadro na mão. Alguma coisa tinha que ser feita.

Cristina jogava no vaso as chaves do cofre onde acabara de enfiar a obra-prima que salvou sua família; Eleonora puxava a descarga. As duas, explicavam baixinho, como confidentes, o óbvio: 

- É só pra garantir... é só pra garantir.

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