PEQUENO ESPÍRITO
Marta Rolim

O pequeno espírito ainda estava preso à terra. Rondava a casa de tábuas onde fora pai de uma menininha; deslizava sobre os longos trilhos, que tantas vezes percorrera, em companhia da família, na velha Maria Fumaça. Fora ferroviário dedicado, sim. Ainda rondava aquelas milhas de terra crua, apegado às manifestações da matéria, saudoso do carinho da mulher, desejoso dos prazeres carnais. 

De vez em quando até sede tinha e podia sentir a garganta carecendo de uma cerveja gelada ou de um bom gole de vinho. 

Ficou ali, retido naquele misto de realidade e impossibilidade um lapso de tempo. Um tempo que não se conta em relógios, nunquinha. Mas o bom Deus teve pena e enviou
um anjo.

Lá estava o pequeno espírito ao redor da casa, espiando pelas janelas, querendo a vida de volta, aquela vida em que a mulher lhe servia um caldo de feijão com arroz e que ele comia com gosto; aquela vida em que ele acarinhava a sua criancinha e ela vinha alisar seus cabelos com sorriso de primavera; aquela vida em que podia olhar nos olhos da esposa amada. Lá estava ele, rondando, incansável, como se fosse o primeiro dia, o dia em que partira.

Mas então, espiando pelas vidraças, que para ele estavam sempre intactas e o tempo não corroera, assustou-se. Viu um ser de luz formoso, uma criatura divina que jamais sonhara ver. E o pobre infeliz, depois de tamanho susto, viu que o Iluminado era de paz e não o agredia ou ameaçava. Tomou coragem e aproximou-se um pouquinho. Mais, mais um pouquinho. E viu.

Era ele mesmo na vidraça, num caco refletido. O Anjo. Finalmente pode ver, então, que a casa querida fazia tempo que ruíra e que sua luz a outros planos pertencia. 

Subiu aos céus. 

fale com a autora

Para voltar ao índice, utilize o botão "back" do seu browser.