O AUTO-RETRATO DE DA VINCI
Francisco Pascoal Pinto de Magalhães

Fui vagabundo nas ruas de Florença por um mês e uns dias procurando por um sorriso que me enfeitiçara na plataforma 15 da estação ferroviária de Santa Maria Novella. Sorriso que eu vira estampado na face da linda morena vestindo Gucci, cujos olhos, por estarem protegidos por óculos escuros Armani, eu não consegui saber a cor. Só sei que esse sorriso desembarcou vindo das bandas de Milão transpirando moda e iluminando o meu dia nublado. Antes que eu pudesse entender o que se passava, ela desapareceu em meio à multidão levando o seu sorriso.

A pão, vinho e arte sobrevivi. Cumpri minha via crucis pelas ruas renascentistas, pelas praças, palácios procurando desesperadamente por aquele sorriso.

Foi no auge desse desespero que estendi minha busca a Pisa e voltei ardendo em febre. Desanimado debrucei-me na ponte Vecchio sobre o rio Arno e ali deixei-me estar contemplando o movimento lento das águas seculares pensando como poderia encontrá-la.

E se a encontrasse, o que lhe diria? Perguntei-me. Talvez nada dissesse. O encanto talvez me deixasse mudo, confuso, desnorteado, como da outra vez. E se eu flutuasse feito um balão de gás para além do domo da Catedral de Santa Maria del Fiori, do Campanário de Giotto e me deixasse levar sem resistência rumo aos campos verdes da Toscana? Tudo era possível. 

De fato não mais a encontrei. 

Quando voltava a Roma num vagão de terceira classe, sentou-se ao meu lado um homem velho de longas barbas brancas e olhos sábios, cujo semblante me pareceu familiar. Palavra alguma trocamos. Quando ele desembarcou em uma das inúmeras pequenas estações pelas quais se passa antes de chegar à Cidade Santa, sobre o assento largou uma revista em que estivera concentrado em absorta leitura. Ainda vi-o à distância desaparecer com sua valise pesada de couro marrom e canudos de projetos por uma rua lateral próxima. Parecia meio atrapalhado.

Certo de que não retornaria para reclamá-la, apossei-me da revista para matar o tempo e descobri que tratava-se de uma edição semanal sobre arte com belas ilustrações. Numa página que supus propositadamente dobrada por algum interesse especial do velho, uma reprodução da Monalisa ou Gioconda, do gênio Leonardo da Vinci.

Só então que percebi o quanto eu estivera fora do meu eixo, com idéias embaraçadas como novelos de linha. E me censurei mil vezes por não ter percebido antes que o sorriso da moça misteriosa de Florença não era outro senão o da bela Gioconda; e que o velho que estivera ao meu lado ainda há pouco era... Bom, deixa pra lá. "Yo no creo en fantasmas, pero que los ay...". Por via de dúvidas, decidi começar a pegar leve com o vinho.

A legenda em italiano embaixo da gravura explicava o que eu já sabia: que Gioconda e seu sorriso enigmático jamais existiram; que havia provas de que travestida naquela bela moça da tela estaria a própria imagem do autor. Um auto-retrato que confundiria, assim como os textos em caligrafia invertida dos seus famosos cadernos, os expertos de plantão ao longo dos séculos e demonstraria o fino senso de humor do genial artista florentino.

Ao trigésimo terceiro dia descansei finalmente do martírio da infrutífera procura e voltei para casa resignado: Senhores, eu não sou digno de decifrar o enigma de um sorriso eternizado na valiosa tela que encontra-se hoje no Louvre onde jamais estive. Mas insisto ainda em tê-lo visto esboçado em fino traço na bela face anônima da jovem modelo em Florença; pois quase fui às raias da loucura por causa disso.

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