TRÊS POR QUATRO
Doca Ramos Mello

No começo era o verbo...

E o verbo era mesmo meio complicadinho, perdoável até, um senão aqui, um acerto ali, e pronto - dava p'ra levar sem grandes tropeços.

Então vieram os pronomes, os substantivos compostos, os plurais irregulares, a morfossintaxe do numeral, a ortoepia, as locuções adjetivas, as metáforas, os sinônimos e antônimos, a prosódia, os termos integrantes da oração, o pleonasmo, a acentuação gráfica, as concordâncias, a semântica, os elementos mórficos, a crase, o adjunto adnominal, a fonologia... Quer dizer, embolou o meio de campo e ainda prejudicou-me o contato com meus senhores, logo eu, sempre certinha, regida por sólidos princípios, modulada com especial sonoridade, os "esses" todos nos seus devidos lugares, minha escrita e minha fala definidas sob estrita vigilância do meu passado de influências variadas e cortejadas, aquele latim soberbo a engalanar-me a pompa...

Espelho, espelho meu, que foi feito de uma língua tão bela como eu?! Por que me vejo obrigada a dar minha cara a tapa e topar de frente com uma realidade crudelíssima que, me parece, objetiva dizimar-me, ai, eu mereço? Eu, que atravessei a Península Ibérica na boca de trovadores como Pero Gonzalez de Mendonça, fui ferramenta de escritores da envergadura de Luís Vaz de Camões, e cruzei este país pela pena de gente como Olavo Bilac, Oswald de Andrade, Machado... Eu, que vivi entre cabeças coroadas e sobrevivi ao Império Romano, minha gente, já fui arcaica e me tornei acessível ao paladar moderno, para que nunca me dissessem uma saudosista tola, é brincadeira?

Agora, isso!

E tome letras da música pseudo-sertaneja, a fala trágica dos apresentadores da TV, as estranhas verbalizações das rádios FM, os jornalistas bonitinhos, porém ruins de improviso oral, as escolas que andam aceitando "tigolo" por "tijolo", as metáforas empobrecidas, os versos que rimam flor com dor, as publicações como revistas e jornais absolutamente despreocupados do cuidado comigo e minhas questões mais íntimas e queridas, ai, meus amores, "casa" se escreve com "esse", "zabumba" começa com "z", e não é "sube", é "soube", nem "troféis", mas "troféus", por Deus!

E tome sindicalês, entrevista de jogador de futebol (a gente "ajudamos" a equipe), petês (eu entendo "de que"...), o trafiquês, a egüinha pocotó, o politiquês, o inglês, o balaio de gatos, ai de mim! Estou mesmo caidaça... Credo! Essa coisa pega! Digo, caída. Pitanguy dá jeito? Eu estou precisando de um Pitanguy lingüístico, um spa gramatical, uma temporada anti-estresse pró-acentuação gráfica, na Chapada dos Guimarães, uma yoga de concordâncias, massagens na minha grafia, por favor, não agüento mais ser pisoteada, francamente!

Ai, suspiro! Eu, a última flor do Lácio, cada dia mais inculta e menos bela, quanto venho padecendo agruras indescritíveis na boca e nas mãos daqueles a quem caberia, com respeito e devoção, o dever de me reverenciar, oh, meus sais, não sou, por ventura, um patrimônio cultural de milhões de pessoas?!

Recortada, estilhaçada, vilipendiada, cá estou eu, os cotovelos gastos no batente da minha janela, contemplando desolada todas as mil e uma formas de atentados praticados contra a minha majestade, o deboche lingüístico instalado, a filologia rasgada ao meio, meus aspectos mais preciosos relegados a um desprezo inconteste, gemendo nos campos do Senhor...

...E até mesmo Ele, incapaz de fazer qualquer coisa, limita-se a me fotografar a miséria e os maus tratos, com Seu olhar nostálgico voltado para os bons sânscritos e aramaicos tempos, quando era somente o verbo, e dava p'ra suportar...

Click! Estou, realmente, muito mal na foto. 

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