CURRICULUM VITAE
Ana Terra

Dezoito anos. Mochila quase vazia. Cabeça cheia de sonhos. Nada definido. Deixo a casa de meus pais. O espaço era muito restrito para meu espírito livre.

Tempos difíceis. Minha geração foi a mais oprimida e massacrada do século passado. Anos de medo e repressão. As opções eram poucas. Ou ficava sentada esperando marido. Ou fugia da família para acompanhar os hippies por este mundo afora, com flores no cabelo idealizando paz e amor. Ou a briga pelo sustento e liberdade. O ideal hippie era fascinante para minha cabeça jovem, mas cheirava à alienação. 

Ironicamente, como todos daquela época, em plena repressão, moro numa República. Caos geral. Sem ordem e sem lei. Experiência rica. Época de grandes descobertas. O mundo fervilhava. Sociedade, costumes e cultura em plena ebulição. 

Começo a luta. Procura do primeiro emprego. Quantas portas na cara! Quantas lágrimas! Quanta impotência!

O desejo de desistir me rodeava, mas fingia que ele não existia. O espírito livre falava mais alto. O trabalho aparece. Salário miserável, que garantia a alimentação e teto. Crédito Educativo para a Faculdade.

Era só o início. Ideais discutidos na calada da madrugada. Violência militar e política. Masmorras do DOPS. A não aceitação da ditadura gerando violência. Medo. Guerrilha urbana. Jovens estudantes e formadores de opinião sendo torturados, mortos ou "desaparecidos". Meus ídolos exilados.

Dias voavam. Estudo, trabalho e noitadas com muita cerveja e conversas.

Fases, uma após outra. Esotérica, militante em cima do muro, niilista, kardecista, petista. 

Chego aos trinta anos. Minha velha mochila engordando aos poucos. Alegrias, decepções, descobertas, acertos e erros. A vida continua com mais tranqüilidade, mas não estava satisfeita (aliás, nunca estarei). A ditadura acaba. A tão sonhada liberdade, timidamente, começa a mostrar sua cara. A censura se despede sem deixar saudades. Ranços do período militar. Anos apáticos, dormentes. Muita leitura. 

Os quarenta anos me pegam de surpresa. Não tinha percebido que tenho a capacidade de enganar o tempo, por isso, quase um colapso emocional. Amigos dispersos. Pais se vão. Família desmorona. A Natureza cumpre sua tarefa. Ganho de presente rugas na testa. Um fio de cabelo branco. Solidão. Depressão. Tratamento médico. Minha visão se contrai. 

Num dia qualquer encontro a velha mochila. Pesada. Ao abri-la, quantas surpresas! Depois de separar o que iria para o lixo e o que guardaria, percebi que ainda estava viva. Encontrei cacos e pedaços do mosaico da minha vida. Senti que meu ideal de liberdade continua intacto. Que a filosofia da paz e do amor deixou marcas profundas na minha alma. Da ditadura restou uma aversão ao autoritarismo. Meu espírito nômade em turbilhão.

Conversei comigo longamente. Dois terços da vida já se foram. Precisava de um objetivo. Escolhi a dedicação exclusiva às minhas emoções, que pareciam fossilizadas na alma. Vi quantos degraus já tinha subido da escada sem fim.

Na velha mochila estavam guardadas alegrias e momentos de êxtase. Renasci ao terminar de limpá-la. Percebi que não estava envelhecendo e sim adolescendo. Grandes descobertas novamente. Certeza de que a vida é preciosa. Teorias há tanto tempo esquecidas estão sendo vividas com intensidade. Sensualidade à flor da pele.

Hormônios enlouquecidos. Menopausa. Faz parte.

Vários caminhos se abrem. Não escolho nenhum. Deixo por conta da intuição. Ainda não sei quem sou. E nem quero saber.

Ingenuamente pensei ter alcançado a lucidez, mas não a encontrei. Acho que ela foi para o lixo também.

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