OBRA PRIMA
Alberto Carmo

Shangrinália ficava no coração do país. Era um vale seco, de terra poeirenta. Trazia nos entornos uma cadeia de morros verdejantes que dominavam todos os horizontes. Os barracos penduravam-se entre árvores gigantescas da Mata Atlântica preservada por seus habitantes. Eram pardos, quase todos - orgulho da raça mutante. Os mais claros eram olhados como albinos e tratados com o cuidado que a deformação exigia. Era um povo generoso, e haviam exterminado a violência branca com propaganda reversa. Nenhuma morte houve. O inimigo entregou-se em delírios de êxtase. 

Otelo Weiss de Windsor descendia de um cruzamento bastardo entre antiga nobre e seu escravo mais fiel. Trazia na pele os matizes de todas as raças, mescladas durante antigos empirismos feitos na cadeia reprodutiva. 

Naquela tarde, estava novamente postado frente ao espelho. Tentava reproduzir na tela os meandros do cabelo multicor. Teria sido mais fácil começar pelos olhos turquesas, que davam-lhe um contraste fascinante com a pele do rosto. Mas o cabelo denunciava-lhe a origem duvidosa, e mal podia esperar até descobri-la. 

Logo abaixo das montanhas ficavam as fendas geológicas, que absorviam as águas velozes das encostas. Tinham cerca de mil quilômetros de profundidade, e não mais que dois mil metros até a ilha onde viviam os antigos inimigos, agora transformados em seres inertes. 

A profusão da Via Láctea podia ser vista das janelas. A luz tênue dos lampiões não conseguia sufocar as noites. Era uma espécie de rito, que as crianças cumpriam a cada anoitecer. Durava o tempo necessário, até que lhes viesse o sono. Tinham pernas musculosas, moldadas nos labirintos que cruzavam a floresta íngreme. A escuridão dos morros contrastava com o brilho que vinha da ilha dos brancos. Podiam sentir o piscar das telas digitais que fugiam pelas janelas das mansões ao longe. 

As crianças sabiam existir lá, além das fendas, seres pequenos como elas. Sabiam também do perigo que traziam, e deixavam molhar os olhos inocentes pela compaixão que sentiam. 

Otelo fazia o turno da lua cheia, quando descia até o vale pelo teleférico. Era recebido com entusiasmo por aquela gente enfraquecida. Fazia a distribuição da água nos dois primeiros dias. Depois, visitava as quadras. A cada dezoito meses cumpria uma volta completa. A cada casa sentia o coração apertar. A alegria dos casais congelando cada gota era comemorada nos monitores. 

Cada morada era observada pelos vizinhos. A comida era aprovada através de uma célula chumbada no teto da cozinha. Cada passo era analisado pelos vizinhos antes de chegar à esteira da sala. Sabiam que os temperos escolhidos trariam o melhor sabor, a consistência perfeita. Otelo sorria ao ver o líquido pastoso fluir até a boca das crianças. As próteses paravam nesse momento. As pernas ficavam imóveis nas poltronas, até que todo o alimento fosse consumido. Tentava disfarçar o asco pelas peles alvas. 

As imagens se multiplicavam subliminares pelo ambiente. Naquela noite, iam consumir a nova fibra ótica que eliminaria a necessidade de voltar a cabeça. Poderiam ver os irmãos em posição estática. Otelo conectou os elementos e deixou o pequeno aparelho nas mãos de cada membro da família. Os pais estavam orgulhosos pela nova conquista. Levantavam as mãos na direção das câmeras. Sabiam que os vizinhos os invejariam pelo momento vitorioso.

O retorno exigia duas horas através dos cabos de aço. Otelo aproveitava cada minuto a olhar sua imagem refletida no vidro do veículo. Notou que havia um brilho intenso sempre que tornava ao lar. Pensou no pincel ideal que o pudesse retratar.

A desinfecção era rápida. O alívio de pisar descalço na terra era sempre o mesmo. Subia pelo labirinto até sua casa, na metade do caminho ao topo. Ao chegar, o banho de ervas já o esperava. Deixa-se ficar até que a água ficasse morna. Depois tomava a sopa de frutas energéticas e se deixava dominar pelo sono.

Acordava pouco antes do amanhecer. A refeição era breve e suculenta. Antes do sol surgir no cume já estava nos campos de alimento. A descida no lado oposto das montanhas era suave. Procurava evitar a proximidade dos irmãos, pois levavam dois dias até que o odor do vale se dissipasse.

Sabia que o relatório traria nova execução. Estava excitado com o fato. Tratava-se de um corpo masculino, pai de uma das famílias visitadas. Após cinco meses ele finalmente mostrara indignação no exame da retina. 

Quando Otelo chegou à seara foi recebido aos brados de vitória. Poderia escolher a pena capital. Não tinha dúvidas, seria por afogamento. A multidão exultou. 

Não se trabalharia naquele dia. Os anciãos formavam em roda. O chá era bebido lentamente, e passava de mão em mão. A pena havia sido aprovada. Seria afogado após o ritual de passagem.

Otelo deixou voar o falcão mensageiro. Levava nas asas o recado esperado por Néctar, a esposa tão amada. - Vencemos, será afogado. A companheira mal pode conter o abraço no filho. Vinha de família tradicional, dona de imensas nascentes. Tão logo se livrou da alegria tratou de preparar a virgem. 

Havia muitos anos desde que prometera a doce Nívea ao sacrifício sublime. Otelo a ensinara os segredos das sementes. Néctar a ensinou as contrações. Estava pronta para a data longamente esperada. 

O dia monumental chegou rapidamente. Flores luminosas descreviam todos os caminhos da montanha. Os aquedutos estavam prontos no abismo. Ao sinal dos pássaros foram abertos. Uma garoa infinita jorrou sobre a ilha. Podiam ver de longe as cadeiras de roda dançando no murmurar do banquete. Pais e filhos erguiam os braços em acenos agradecidos. 

O teleférico trouxe o pai tomado de alegrias. Tão logo desembarcou, recebeu a unção dos anônimos que tanto sonhara. As próteses foram retiradas pelas crianças, os pés logo tocaram a terra. Caiu de joelhos, tão forte a carga magnética do solo. Os olhos eram quedas d'água incontroláveis, os braços estendiam-se sem limites. 

Carregado pelos mais jovens, chegou até a relva onde o esperava a virgem prometida. A transferência foi rápida e convulsiva. Estava semeada a jovem negra. 

O prisioneiro foi levado à câmara ainda em espasmos. O ritual cumpriu-se célere. A imagem refratada trazia os olhos abertos, ávidos pelo desfecho. O corpo flutuou lento até o fundo. A multidão que acompanhava o sacrifício jogou as tochas ao alto. 

De madrugada, entre o respiro do teto e as chamas do fogão, Otelo subiu ao topo e retirou-se ao estúdio. Olhou ao longe, onde brotavam os lagos intermináveis. O ar era de pureza quase etérea. Abriu um armário baixo, de onde retirou anéis de cipó e gemas de mogno. O incenso tomou os espaços e deixou perfumar as oferendas ao deus nórdico. 

Quando sentiu a mente turvada, voltou ao cavalete. As imagens agora eram nítidas, as cores indefinidas. Talhou os olhos rapidamente, em cores vívidas. Desceu às faces em tons de branco. Depois tocou-lhes com âmbar, vermelho, e finalmente o ébano. 

O espelho e a tela confundiram-se. Entendeu a perfeição do retrato. Num último gesto, tomou com as mãos a nata do seio que Néctar lhe confiara e perfurou o coração.

Tudo estava consumado.

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