APARENTEMENTE FEIO
Wesley Nogueira

A vida de Hilton mudou quando ele tinha apenas oito anos de idade, uma brincadeira inocente que lhe custou muito sofrimento. Catava garrafas vazias em casa para trocar por balas na vendinha da esquina, quando ao puxar uma da prateleira, outra garrafa cheia de álcool despencou, espatifou-se no chão e o encharcou. A chama do fogão que cozinhava o arroz do almoço completou a tragédia. 

Hilton se viu num inferno de chamas quase invisíveis, ele não podia acreditar que algo que praticamente não podia ser visto estava queimando e devorando sua carne. Rolando pelo chão, foi socorrido pela mãe, mas o estrago fora grande, queimaduras em todo o corpo, do rosto aos pés, que lhe renderam um grande tempo de tratamento doloroso em hospitais. 

Apesar de recuperado, todo o corpo de Hilton estava coberto de cicatrizes, não que ele tenha se tornado uma aberração, era um rapaz alto e forte, mas cheio de cicatrizes, que aos olhos de muitos, e principalmente aos seus, o tornavam uma pessoa feia. 

O restante da infância e a adolescência foram os mais penosos, pois na inocente crueldade dos seus coleguinhas ele era apelidado de "queimado", "carne assada" e outros nomes que para os colegas eram brincadeira, mas nele doíam muito. 

Hilton cresceu, tornou-se homem, adaptou sua vida a suas mazelas, andava sempre vestido demais, um boné sempre na cabeça, camisas com mangas compridas, mesmo nos dias mais quentes do verão. Sua vida social e amorosa era praticamente nula, pois se achava um aleijão e não se arriscava com as garotas, mesmo as que lhe inspiravam paixão. Tinha poucos amigos fora da família, um ou outro no trabalho, não saía, fumava ou bebia. 

Seu trabalho era simples e o deixava ainda mais distante das pessoas, trabalhava em um almoxarifado de um empresa de médio porte, passava os dias conferindo estoques e contando mercadoria, às vezes carregando caixas de um lado para o outro do armazém. Nos dias quentes, quando estava sozinho, permitia-se tirar a camisa e o boné para fazer o trabalho braçal. 

Foi em um dia assim que ele conheceu Dora, estava lá com uma caixa no ombro, sem camisa, quando aquela mulher pequena e simpática irrompeu pelo corredor entre as estantes. Dora era uma vendedora da loja a qual o armazém servia, tentava encontrar uma mercadoria a fim de fechar uma venda, o cliente já esperando. 

Hilton soltou a caixa e foi em busca da camisa e do boné, envergonhado da sua aparência bizarra, mas Dora não viu nada de tão bizarro assim, notou as várias cicatrizes, mas viu um homem forte e viril além delas, ela sempre gostara de ver homens em trabalhos mais pesados, não gostava muito de homens "florzinha", todo arrumadinho e perfumado, preferia os mais viris. 

Hilton voltou com a camisa sobre o corpo e o boné ocultando o cabelo irregular que lhe crescia na cabeça. Desconcertado, tentou atender Dora, que ele só conhecia de relance, por trabalharem na mesma empresa, mas, como ele não ia aos eventos sociais promovidos para os funcionários, nunca tivera a chance de conhecê-la melhor. 

Dora sabia o que queria e logo resolveu seu problema, sendo simpática e amável, e tratando Hilton normalmente, com cortesia mas sem a pena do olhar que ele sempre sentia de todos que o abordavam. E disso gostou muito, era uma coisa pela qual ansiava, ser tratado como todo mundo, uma pessoa normal que sabia ser, mas às vezes duvidava...

Dora, por sua vez, não era a Miss Brasil nem uma Estrela da Globo, mas também não era uma mulher feia, era bonita, do tipo comum, com uma simpatia acima do normal, pequena, mais para gorda que para magra, mas sem exageros, tipicamente brasileira, morena clara, cabelo encaracolado, e desde aquele momento não saía da cabeça de Hilton. 

Ele não sabia ainda, mas também ele não saiu da cabeça de Dora tão cedo, ela ficou com a imagem daquele homem de aparência rústica mas de voz suave, jeito tímido, muito mais atraente que os outros namorados que ela tivera até hoje. 

Embora fosse bem mais jovem que Hilton, tinha bem mais experiência que ele, já namorava desde os quinze anos, tivera alguns casinhos e dois namoros mais sérios que acabaram dando em nada, gostava de sair com amigos, mas dentro dos limites do normal, não gostava muito de noitadas, pois seu trabalho a absorvia e era uma fonte de renda importante no orçamento de sua família, que incluía além de seus pais, dois irmãos mais novos que ainda estudavam e só colaboravam na hora de aumentar as despesas, nunca os ganhos.

Dora comentou com uma colega de trabalho seu súbito interesse pelo "cara do almoxarifado", e através dela e de outras conversas, descobriu a história de vida dele, sobre as queimadura, coisas que sempre rodam dentro da empresa e todos acham que sabem. A amiga em particular estranhou o interesse que Dora, uma menina tão nova e bonitinha, teria por um homem mais velho e de aparência deformada, mas parecia que Dora estava vivendo o dito popular, "a quem ama, o feio bonito lhe parece", e ficou sempre se candidatando a ir ao almoxarifado pegar alguma mercadoria ou saber de alguma chegada de novos produtos, só para ver Hilton.

Em pouco tempo Hilton e Dora foram se entendendo, ele sem acreditar na sorte que estava tendo, e ela fascinada com aquele homem tão bom e tão calmo, que sempre lhe sorria, apesar do boné na cabeça e das camisas de mangas compridas. Um dia ela resolveu arriscar e perguntar se ele não queria sair com ela, para um cinema, ou com a turma do trabalho para um bar, Hilton com vergonha de sua aparência e de sua falta de traquejo social, resistiu o quanto pôde, mas ele queria muito ver Dora fora do horário de trabalho, e acabaram combinando um passeio em um parque. 

Durante os passeios começaram a surgir os toques, no início discretos, mas logo Dora descobriu que a pele de Hilton não era tão áspera quanto parecia. No primeiro beijo, nada de ruim sentiu, a não ser uma certa inexperiência no ato de beijar, mas seu sabor era gostoso, e ela sentia sua alma arder por ele a cada beijo que trocavam, assim como adorava sentir seus braços envolvendo seu corpo.

O namoro ia bem, e o casal sentia necessidade de mais intimidade, especialmente Dora, mais experiente e com menos medo de perder. Hilton sentia a necessidade, mas tinha medo de mostrar seu corpo cheio de cicatrizes, embora sua virilidade não tivesse sido afetada pelo acidente, tinha vergonha de mostrar-se assim a Dora.

Mas o carinho de Dora falou mais alto, e o desejo fez com que eles procurassem um lugar calmo, íntimo e confortável para liberarem seu amor. No início ele teve dificuldades em desnudar-se, mas Dora venceu essas barreiras com carinho e atenção, ela mesma achando que se chocaria, mas isso não aconteceu, ela pôde comprovar, aliás ambos, que amor é mais um coisa de almas, pouco tem de aparência física. E os dois fizeram amor, como amantes normais, normais como ele sempre quis ser, e acabou descobrindo que sempre foi.

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