A ÚLTIMA MELODIA
Juraci
O vento soprava a rede armada entre as duas árvores, sempre vazia. Descorada, já amarelada, cheia de poeira. Mais adiante, um pequeno rego marcava um caminho líquido no chão. Algumas folhas de outono, desciam água abaixo, girando e dançando num ritmo vagaroso. Mata verde, árvores frondosas, refrescavam o ambiente.
Com o novelo de lã e a agulha de crochê na mão, Tereza aproximou-se lentamente da rede, a preferida do Romão e sentou-se deixando os joelhos magros à mostra. A surrada saia godê subia e descia de acordo com o atrevimento do vento. Observou um instante o balanço da rede. Lento, muito lento. Ia e vinha preguiçosamente. Trazia lembranças do marido Romão que falecera vitimado por uma próstata supurada.
"Nunca ele aceitou fazer aquele tipo de exame... morreu esperando aparecer um toque computadorizado, mais moderno"
- ela pensou. "Macho que é macho, morre intocável" - continuava a pensar, agora em voz alta.
Reviu por alguns instantes os bons e maus momentos de convivência a dois. Romão não era um homem bonito mas, tinha suas qualidades. Gostava dela e a valorizava como esposa dedicada ao lar. Há quem diga que o feio bonito lhe parece. Ela o achava bonito, amoroso e lhe completou. Sentia sua falta, como sentia...
Com a mão calosa, marca da mão de pilão de pisar arroz, secou um fio de lágrimas que teimava em escorrer pela face.
Suspirou... Encheu-se de nostalgia. Fechou os olhos e relembrou das primaveras floridas, das festas alegres onde Romão puxava o fole da sanfona e ela de cócoras, com as mãos sobre os joelhos do marido, soltava a voz de patativa enamorada. O salão virava um baile só, todos num só balanço, num só suor, num só perfume. Ah, queria aqueles momentos de volta...
A rede balançava o pensamento dela. Nem um ponto do crochê foi arrematado. Não teceu nada com a linha do novelo só com as da mente.
Uma folha tocada pelo vento pousou no seu rosto e, quase num gesto violento magoou os olhos, retirando-a do seu devaneio.
"Puxa, não fiz nada hoje!"
Aninhou-se mais entre a rede apertada. Deitou-se de verdade. Sentiu a presença fria de Romão. Arrepiou-se. O vento já não era suave, era gelado. A noite se aproximava trazendo os pássaros de volta aos seus ninhos. O bater de asas a fazia lembrar do estampido da espingarda do Romão num tiro certeiro na presa fácil para o jantar. Respirou o cheiro de pólvora queimada.
- Romão!? Você está aqui?
Novos arrepios no corpo. O material de tricotar foi colocado de lado e com as mãos frias começou a fazer massagens nos braços e coxas, na tentativa de espantar os arrepios e espíritos.
Repentinamente o novelo e agulha caíram no chão logo que a velocidade da rede acelerou. Teve a sensação de que alguém balançava a rede. As folhas das árvores bailavam em alvoroço ao toque do vento que soprava forte. Pareciam espantadas com a presença de mais alguém.
- Romão! — ela gritou com força.
O silêncio lhe pareceu imenso. Tudo tinha cor de fim de mundo. Sentiu um pavor infundado. Para espantá-lo precisava fazer algo. E fez. Começou a cantar como se acompanhasse o toque de uma sanfona. Foi uma melodia inédita. Cantou como nunca e, sem medo.
Dias depois, a melodia do além, estava nos primeiros lugares em todas as rádios do mundo. Não dava para entender tanto sucesso... Só Tereza entendia.
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