NOSSA INFÂNCIA
Márcia Ribeiro

Não há cartazes espalhados pela cidade. Não há uma foto, que nunca condiz com a realidade, estampada nas colunas destinadas a este fim pelos jornais. Nem sequer um pequeno aviso, destes que são distribuídos nas ruas ou colocados nas tantas caixas de correios e depois jogados fora, tão logo recebam um olhar momentâneo de franca tristeza e de agradecimento aos Céus por aquilo não estar acontecendo no seio de nossas famílias.

Não há número de telefone para um contato urgente, nem um endereço sequer, quem sabe um site, destes que acessamos com dedos trêmulos de emoção digitando a boa nova.

Porém, há os quintais repletos de árvores que dão um fruto engraçado. Engraçado pelo nome e porque não podemos comê-lo tão logo seja retirado do pé. Não. Tem que ser assado ou cozido. Se não me falha a memória, seu nome é fruta-pão. Nunca entendi, mas, também, com uma delícia como essa, qual o motivo de preocupação para entender. Bom mesmo é saboreá-la, pedacinho por pedacinho, principalmente quando é assado.

Os quintais. Belos quintais!

Desses que lá no fundo, bem escondido, abrigam um chiqueiro repleto de leitões barulhentos e ansiosos, se esperneando ao redor das tetas da enorme porca que tenta, inutilmente, se livrar da fome insaciável dos filhotes.

Mas o melhor quintal ainda é o da Vó Guiomar. Este sim, é o mais belo e mais freqüentado. Dali podemos sentir e pressentir o que de mais delicioso e surpreendente pode surgir da cozinha ampla, onde mãos de fada preparam desde o mais simples picolé de palito até a famosa Surpresa de Banana, que derrete em nossas bocas.

Há os pés de goiaba, viçosos e grandes, como poucos vistos, que são escalados com o desespero de se conseguir alcançar a maior, mais formosa e mais saborosa goiaba vermelha, que é devorada antes mesmo de se preocupar e de se cuidar dos tantos arranhões e cortes provocados pelo completo desconhecimento do perigo que uma escalada daquela pode proporcionar.

Há os pastéis comprados à duras penas na antiga casinha construída no terreno do Grupo Escolar à hora do recreio, mais preciosa quando sentimos no ar o cheiro inconfundível da fritura dos pastéis que só dona Pequenina sabe fazer. Dizem até que ela costuma usar um pó mágico para enfeitiçar seus fregueses. Nem precisa, pois as mãos habilidosas já nos enfeitiçam.

Há a visita de corações aos pulos de tanto medo, ao terreno da velha e tenebrosa casa abandonada. Aí sim, toda a fantasia, com tudo o que a imaginação pode proporcionar, é explorada e inesgotavelmente vivida.

Há as ruas com os paralelepípedos encaixados tão certinhos e que parecem combinar entre si, pois todas se encontram no ponto principal da Cidade: A Praça Dr. Pedro Honório Galvão. É mesmo engraçado de se observar, num dos raros momentos de quietude e simples conversa, que tudo parece arquitetado, já que a Igreja, o Clube Recreativo, a Prefeitura, a padaria, a farmácia, o Hospital ficam em frente a Praça.

Há a hora certa de interromper a fantasia e voltar a dura realidade, para desgosto de todos nós. Chega o momento das reclamações, das intermináveis súplicas e lágrimas, quando tudo que nos espera é o banho, fazer as refeições, escovar os dentes, fazer o dever de casa, escovar os cabelos, colocar a roupa limpinha, com cheiro do sabão perfumado, fazendo com haja arrependimento pela choradeira na hora do banho. 

Há o momento de irmos para a casa da vovó, e não ganharmos olhares reprovadores ou beliscões, desde que não aceitemos imediatamente o que nos é oferecido e que fiquemos como estátuas em frente a TV preto e branco, ouvindo, sem nada entender, o que está sendo divulgado pela voz inconfundível do Cid Moreira, o jovem galã do jornal transmitido naquele horário.

Há o dormir e acordar com preocupação desembalada, com o sono repleto de pesadelos e suores desproporcionais, somente na época dos temíveis exames de conhecimentos, aplicados pelas vilãs, pois é no que as doces professoras se transformam nessa época.

Há a resistência às fantasias de carnaval, quando tudo que se consegue fazer é chorar à beira da calçada, sentados e obrigatoriamente fantasiados de índios, colombinas, piratas, e sabe lá Deus o que mais poderá ser, já que a concorrência entre as incansáveis mães é de tornar possível a realização de todo e qualquer pesadelo dos filhos.

Há a batata frita nas refeições, após uma longa sessão de tortura, acompanhada das eternas ameaças de que amanhã comeremos legumes e verduras diversas custe o que custar. Comemos calados e sem os ouvidos atentos às ameaças, preocupados somente em saber com quem disputaremos o quinhão de batatas fritas ainda dispostas na travessa, para logo depois nos saciarmos com a sobremesa, que quase sempre é uma surpresa em forma de sorvete.

Há o colo paterno a nos proteger da inesgotável mania de perfeição materna, quando os olhares se dividem entre a reprovação, a ternura e um quê de "você não tem jeito mesmo", dito com um sorriso disfarçado no canto dos lábios antes tão severos e determinados na expressão das palavras.

Não há retratos, nem mensagens, nem endereços, nem telefones, nem jornais, nem sites. Mas há nos olhos e no sentimento repleto das mais doces lembranças do adulto, um sonoro alarme a clamar: PROCURA-SE A INFÂNCIA.

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