QUINZE DE FEVEREIRO DE 2003 
Mairy Sarmanho

Hoje é dia quinze de fevereiro de 2003. Pela manhã, quando abri o jornal, meus olhos correram sobre uma notícia na página policial: ontem, às quatorze horas e trinta minutos, um arquiteto foi morto. Foi morto porque estava fazendo uma reforma em sua garagem e um grupo de assaltantes entrou pelos fundos da casa e os rendeu. Para defender a família, ele reagiu e foi ferido, vindo a falecer às dezessete horas e trinta minutos no hospital. Foi socorrido por vizinhos. Não passaria de mais uma notícia sobre violência, não fosse o nome estampado no jornal: meu amigo de infância, com o qual cresci junto e pelo qual tive afeto como se fosse meu irmão (aliás, gostava mais dele do que de meu irmão verdadeiro), foi morto de uma forma brutal e injustificada. Lembrei de seus filhos, quatro crianças maravilhosas que ele inventou e soube criar como cidadãos dignos e trabalhadores, um ainda menininho, lindo, inocente. Lembrei de sua esposa, de sua mãe e de mim mesma, pois a dor que estou sentindo é tão grande que acabo por repensar minha própria vida. Meu amigo morava aqui pertinho, duas quadras de distância, e foi morto à tarde, por um motivo fútil, por um grupo de criminosos que, como sempre, continuarão impunes pelas mãos dos homens, para matar mais um, dois, três... Se forem presos pegarão três anos, no máximo, porque existe direitos humanos para eles mas não existiu para o meu amigo. E serão tratados com regalias, sustentados por uma sociedade omissa e ordinária, com leis injustas e desumanas. Sim, desumanas, porque é impossível viver num mundo desses, com tantas coisas erradas e ainda achar que existe alguma coisa decente para acreditar! Sinto muito, eu não acredito em mais nada! 

Trabalho num lugar onde vejo pessoas (principalmente pobres, para bem da verdade) forjarem documentos, fraudarem, agredirem, ameaçarem para obter vantagens. Pessoas que se acreditam acima da moral, que justificam tudo com sua miséria, que cometem erros sobre erros e ainda acham que tem razão! Trabalho há tanto tempo com o lado obscuro do ser humano, que perdi minha vontade de ajudá-los. Não existe inocência, nem dignidade nessa gente. Quando resolvi ajudar animais desamparados (cães, gatos, etc) fui muito criticada por algumas pessoas que me cobravam que adotasse uma criança pobre, que ajudasse pessoas carentes... Deus, como poderia fazer isso? Tenho medo, não, pavor de trazer um estranho para minha família, um estranho cuja índole o leve a nos agredir, roubar, matar. Mas as pessoas ainda dizem: o ser humano não nasce mau, ele é produto do meio. Qual o quê! Li uma pesquisa que foi feita onde concluíram que somos noventa por cento genética e os outros dez por cento, pasmem, não são influenciados pelos pais e sim pelo grupo onde convivem, ou seja, os coleguinhas da escola. Eu não quero um estranho cuja genética ignoro, entrando em minha casa e fazendo parte de minha família. Jamais teria por ele um amor verdadeiro, pois sentiria nele uma ameaça.

Tenho pena que as coisas sejam desse jeito e que eu me sinta assim. Meu lar é equilibrado, bom, seguro. Uma criança seria feliz aqui, sem dúvida. Mas, como disse antes, perdi a confiança na humanidade!

Meu amigo era bom pai, bom filho, bom genro e bom profissional. Se dedicava a ajudar pessoas e lutava contra a sociedade cruel que costuma discriminar as pessoas doentes mentais, porque acreditava que todos devemos ajudar a construir um mundo melhor. Ganhava pouco, o suficiente apenas para manter sua família, trabalhava muito, incansavelmente. Tinha seus defeitos (quem não os têm?) mas sobressaía-se nas qualidades. Morava num bairro bom porque herdou a casa (os irmãos abriram mão para eles, afinal, eram os únicos que não haviam atingido um padrão financeiro elevado) e tinha um carro da década de setenta. 

Não consegui ir ao enterro. Desde que meu pai morreu num assalto, não consigo mais ir em cemitérios. 

Procuro um pouco de esperança.

Procuro um lugar melhor para dividir minha vida e auxiliar no que puder.

Procuro dignidade.

Procuro respeito.

Procuro direitos humanos.

Alguém sabe onde posso encontrar? 

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