BOCA
DE CEREJA
Luís Valise
O cansaço
pesa em seus braços como um urso gordo. O penhasco é chapado e as rochas
lá embaixo apontam farpas pontiagudas em direção ao seu corpo. Agora falta
pouco, mas ele não sabe se conseguirá alcançar a borda do precipício,
ou se despencará de encontro às pedras. A idéia das próprias vísceras
esparramadas renova-lhe as forças, e os dedos feridos agarram-se às saliências
cortantes enquanto seus pés raspam a pedra escura em busca de apoio. Movimentos
cuidadosos e decididos empurram-no para cima, e já pode ver tufos de grama
onde termina o platô. Quer deitar no chão plano, guardar a vida debaixo
de si, mas antes precisa chegar lá. Uma ponta saliente e lustrosa é o
derradeiro lance a ser vencido, e sua mão dolorida agarra-a com firmeza.
Deixa todo o peso do corpo sustentado naquela pedra e busca novo apoio
para os pés. A pedra cede. Vê com os olhos arregalados que ela se descola
da base que a continha, e seu corpo inicia a queda de encontro às rochas
lá embaixo, o rodopio dos braços em movimentos loucos e inúteis, enquanto
de sua boca sai um grito que ninguém ouvirá.
Acorda dizendo palavras incompreensíveis, banhado em suor, as cobertas jogadas no chão. Precisa parar de beber. Um gosto ruim na boca, um olhar sem brilho no espelho, o coração entre os rolos da moenda. Quando o dia começa assim o certo é ficar na cama, no quarto escuro, caranguejo na lama, mariposa pousada na lâmpada fria. Melhor nem abrir a janela. Não encontra o caminho do sono. O banho nem frio nem quente mantém a alma no limbo. Uma lâmina usada às pressas deixa o rosto sujo de barba. Um pingo de café mancha a gravata cinza como a língua de um cadáver. Os cabos de aço que sustentam o elevador emitem sons de fadiga como lamentos de uma velha cega. A longa fila de carros no congestionamento conduz milhares de homens ao próprio funeral. O rádio desligado, os vidros levantados, ele respira o silêncio dentro daquele ataúde rodeado de esquifes dirigidos por outros zumbis. No horizonte uma massa de nuvens negras e pesadas anuncia que as coisas sempre podem piorar. Uma viatura de polícia emparelha ao seu lado. A morte o espia por trás dos óculos escuros. Em pensamento ele desacata o policial, manda-o tomar naquele lugar. Vê o próprio sorriso escondido dentro do cérebro. Na porta da viatura a ameaça "Divisão de Capturas", em letras negras dentro do círculo vermelho. O trânsito permanece parado. Ele ergue o olhar para o policial e seu olhar é capturado com fúria. Sustenta o olhar até que o cano de uma arma surge sorrateiro. Ele desvia o olhar, seu pensamento se encrespa, o puto gostaria de atirar nele. A chuva chega com o céu negro. Logo os pingos cobrem os vidros, e ele não mais pode ver nem ser visto. Gotas pesadas como bolas de tênis explodem na lataria do carro, feito balas de treisoitão batendo na terra molhada. A mão direita larga o volante e o dedo médio xinga uma coragem medrosa e atrasada para o policial invisível. O sorriso sai do esconderijo e repuxa os músculos frouxos. Num repente sente-se cheio de coragem. Pega o celular e disca aquele número. Confere as horas. Agora sua bailarina deve estar desperta. Aquela bailarina deixa seu coração em frangalhos. Ela tem cabelos curtos, o olhar redondo de pardal que caiu do ninho, e lábios cor cereja. O telefone toca uma, duas vezes, e antes que ela atenda ele se lembra da sua voz rouca vibrando na hora do gozo "Paulo!", "Paulo!", e aí ele também acaba, sem se importar que seu nome seja Otávio. Ela atende, a voz rouca arrepia os pelinhos da nuca, ele diz "eu preciso muito te ver, hoje". Ela pensa antes de responder "hoje não dá, amorzinho". Ele insiste "amanhã"? A voz fica mais rouca "não sei, amoreco. Me liga amanhã, tá"? O resto do dia passa por ele como um carro de boi na lama. A velha cega lamenta sua chegada. Dentro de casa vira o rosto ao passar pelos espelhos. Escolhe a garrafa de bebida mais forte. Acende o abajur, senta-se na poltrona desbotada, e abre sobre o colo um velho álbum de fotografias. Mais uma vez em busca daquele que ri nas fotos. No fundo sabe que jamais o encontrará. Quando a bebida começa a fazer efeito ele viaja para o passado e experimenta novamente alguns momentos de alegria, e isso dura até que o álbum caia no chão. Passos inseguros até a cama. O travesseiro da bailarina está lá, intocado. Ele se deita ao lado da saudade. Fecha os olhos, pensa nos lábios de cereja, e espera pelo beijo que o aguarda no fundo do abismo. |