GIULIETTA
Fernando Borba

Encontrei a moça meio perdida na praia, olhando a fileira de prédios da avenida. 'Encontrei' não foi bem o caso, ela quem me encontrou, deu-me um encontrão. Era manhã de carnaval e a praia esta apinhada depois de passar mais um bloco. Olhou-me como quem tem uma boa idéia:

"Sabe onde mora a família Montéquio?"

Era uma pergunta muito fora de propósito. Não se pergunta a um desconhecido onde mora alguém também desconhecido - quero dizer, não tão desconhecido, por isso resolvi brincar:

"Montéquio que eu sei é o pessoal do Romeu. Do Romeu de Shakespeare."

Seus olhos piscaram: "Pois é isso mesmo." 

Pensei que ela estava entrando na brincadeira e olhei-a melhor. Bem jovem, saia longa, mini-blusa fina, sandálias, bolsa pendurada no ombro. A pele era alvinha, contrastando com os cabelos negros ao longo do rosto. Óculos sem aro, de lentes brancas. Bem bonitinha, mas completamente em desacordo com o tempo e o lugar. Muito séria, um ar preocupado.

"Meu nome é Julieta. Preciso encontrar os pais de Romeu, acho que ele corre perigo."

"Pera lá, Romeu e Julieta? Aqui na praia, e no carnaval? Já sei: é uma troça nova."

Mas a garota não tinha jeito de quem estava na galhofa. Séria como ela só, continuou:

"Ele está voltando de Mântua para se encontrar comigo, deve chegar em Verona hoje. Nosso plano falhou, por isso deixei um recado com o Capelão do Cemitério, pra dizer a Romeu que não morri, estou bem, e que vinha esperá-lo aqui. Mas acontece que Frei Lorenzo teve um ataque cardíaco."

Joguei no lixo a latinha vazia de cerveja e abri outra. Por absurdo que fosse, a menina era muito convincente, e continuei escutando.

"O veneno que tomei era de mentirinha, mas Romeu não sabe. Vai ficar procurando meu corpo em Verona, vai acabar sendo preso e enforcado. Tenho de encontrar os pais dele, um pessoal importante, com relações na Embaixada, pode interferir. Ah, Santa Madonna!"

Um bloco de sujos se aproximava, e tive de puxá-la para não ser engolida naquela confusão. Ela continuava a explicar o que parecia ser o maior despropósito que eu já tinha ouvido, mas àquela altura parei de me preocupar com a realidade. "Que lindos olhos azuis!", pensei. "E que boquinha gostosa!"

"Bem, se você acha que os Montéquio moram por aqui, é só procurar o nome deles na lista e ligar. Tenho uma lista e um telefone no meu apartamento, é naquele prédio ali em frente."

Julieta olhou para o outro lado da avenida e aceitou meu convite. Por sorte não ia ter ninguém em casa pelo dia inteiro. Subimos e levei-a para a varanda. Peguei o uísque e o gelo, enchi dois copos e lhe ofereci um.

"Obrigada. Só tomo Amaretto dell'Orso, e na festa de Natal."

Sentamos, ela recostou-se e cruzou as mãos no regaço, como uma nobre da Renascença.

"Ô, sinto muito" eu disse. "Hoje não é Natal, mas para mim é um dia único. Nos conhecemos e eu vou te ajudar."

Julieta estava apreensiva e queria logo telefonar. Fui na sala apanhar a lista e o telefone. Enquanto eu bebericava meu uísque, ela folheava o volume e fazia umas ligações. Eu embasbacava para suas mãos esguias, seu rosto bonito e sua voz murmurando docemente em italiano. Fiquei planejando minha próxima abordagem para quando ela desistisse de encontrar os Montéquio e largasse o telefone.

Uma pombinha cor de rosa entrou na varanda, deu voltas e pousou no balde de gelo. Deus me perdoe, mas juro que ela piscou o olho para mim. Repeti a dose de uísque no copo, sem tirar os olhos de Julieta. Então apareceu na varanda um cavalo com arreios dourados e me cumprimentou com um aceno de cabeça:

"Sou Incitatus, o Senador romano. Mas pode me chamar de Tatinho."

Ri tanto que quase sufoquei com um gole de uísque. Minha última lembrança foi de Julieta levantando da cadeira e indo para a sala. Quando acordei, o sol tinha sumido e as lâmpadas da orla começavam a acender. Uma bruta dor de cabeça me atormentava.

"Cadê Julieta?"

A caminho do banheiro notei que meu quarto estava uma bagunça. Nas gavetas desarrumadas da cômoda faltavam os cartões de crédito, o talão de cheques, o dinheiro e o relógio de ouro que tinha sido do velho. Corri feito um desenganado para o guarda-roupa e não encontrei o cofrinho de metal com os dólares e as jóias de minha mulher.

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