BRUTA
IGNORÂNCIA
Beto Muniz
Nada como
passar as férias na vila de infância em companhia dos pais, recordando
amigos e lembranças antigas. Metade do tempo a gente fica pedindo informações
sobre fulano, beltrano, sicrano... E os amigos que ficaram vão contando
o sucedido com um, com outro e com a vila, como se nada tivesse mudado.
Só para gente que veio cuidar da vida na cidade grande é que as coisas
parecem ter mudado. As turmas
só não brigavam dentro da única escola, que na época era grupo escolar,
a diretora era linha dura e os protótipos de bad-boys piavam miudinho
na mão dela. O bairro Tiradentes, onde eu morava, tinha uma turma de dez
a quinze molecotes liderados pelo Pardal. Sujeitinho bom de briga e por
isso mesmo com respeitável fama entre as gangues rivais. Tinha fama também
de comedor, mas o Beterraba, irmão dele, era tímido em excesso. Além de
não se meter em avenças o Beterraba ficava roxo cada vez que uma menina
olhava para cara espinhenta dele. Por isso mesmo levou o apelido de Beterraba. Eu era o menorzinho da turma e não entendi a troca. Achava que se era pra mudar o apelido, que permanecessem na família das quenopodiáceas e, aliás, nem carecia trocar. Havia demorado a entender o por quê do apelido Beterraba e quando finalmente entendi não achava justo o povo trocar pra Brioche, que era um tipo de pãozinho fabricado apenas em Uberlândia, longe pra dedéu, e que a diretora tinha mania de encomendar ao Vicentin, antigo aluno e motorista da linha semanal, uma compota de plástico cheia deles. O povo da vila dizia que brioche era pão de gente rica e que os ricos comiam pouco e por isso que a diretora preferia os briochezinhos aos pães enormes que o Seu Lázaro assava no forno a lenha e vendia pra vila inteira — menos pra diretora. Naquela época eu já pensava demais e nunca chegava a uma conclusão. Eu sempre mudava o assunto no meio do pensamento e, quando percebia, estava pensando noutra coisa completamente diferente. Talvez fosse por isso que eu não entendia como é que um pão poderia ser produzido exclusivamente para gente rica. Se eu tivesse dinheiro para comprá-lo eu não poderia? Foi daí que começou a vontade de experimentar comida de rico! Dinheiro eu não tinha mesmo. Então, para satisfazer a curiosidade, numa quinta-feira eu esperei o ônibus estacionar e quando o Vicentin entregou a embalagem pra diretora eu pedi um brioche. Ela fingiu que não me ouviu e foi embora, caminhando rápido demais para uma mulher do tamanho dela. Depois disso comecei a duvidar dessa história de que rico comia pouco. Se ela comia pouco como é que era tão gorda? E o marido também era gordo! Como sempre eu terminei o dia me resignando com o pensamento de que o povo dizia muita coisa que eu não entenderia nunca. Prova disso
é que estavam transformando o Beterraba em Brioche. O que tinha a ver
o Beterraba virar baitola com os pãezinhos da diretora? Era melhor deixar
pra entender depois, mas até entender eu seria contra a mudança. E tinha
certeza que o Pardal também, mas não me solidarizei. Eu sabia que a qualquer
comentário o Pardal poderia me encher a cara fácil-fácil! Era justo —
eu pensava — um irmão boiola já era incomodo demais pro rapaz. Um desaforo!
"Pra que incomodar mais com conversa besta? Deixe estar". Desaforo envolvendo
a família, desde aqueles tempos, era parecido com sapo cururu e se tinha
uma coisa que o Pardal não engolia era sapo. Ainda mais cururu! |