ENCONTRANDO O POETA
Antonio Rodrigues

E de tanto procurá-lo sem nunca percebê-lo, como sabê-lo encontrado se o momento acontecesse? Em que instante revelado? Em que pensamentos perdido? Em que desvarios? Em que falas? Na fala que vem do apartamento ao lado? Discussão forte... um casal... ele, insatisfeito, quase gritando

Porra, essa merda de relacionamento já não tem jeito... antigamente ainda rolava um cuzinho mas hoje em dia... Nem isso, meu!

Na fala, talvez, que ela ouvira um pouco antes de um senhor de cabelos brancos que cobrou para aconselhá-la.

- Seus medos, temores e vergonhas não são seus; são culturais. No tempo em que as mulheres viviam apenas para servir e procriar, o casamento era permitido aos doze anos, coincidia com a fase da puberdade. Ao filósofo e santo Agostinho foi prometida em casamento uma criança de dez anos. Deveria ele esperar mais dois para possuí-la. Como tal espera lhe parecesse interminável, manteve relações com uma concubina. Sua amante engravidou, momento em que a mãe de Agostinho descobriu tudo e a tirou dele, enviando-a para a África e jurando que lá ela jamais seria tocada por outro homem. Agostinho ficou com o filho que viveria apenas dezesseis anos. Casou-se mais tarde com a criança que lhe fora prometida, porém jamais se livrou da mágoa pela perda de sua concubina, a quem devotava amor extremado. Indignado, lançou mão de recursos retóricos na busca de um culpado pelo seu sofrimento, fosse pessoa ou coisa. Culpou o sexo. Suas idéias se espalharam pelo mundo e foram adotadas pela igreja. Surgiu assim o conceito do que seja moral ou imoral. Homem e mulher deveriam casar-se apenas para procriar. Jamais um deveria apaixonar-se pelo outro porque tal afeição representaria adultério contra Deus. Esta e outras idéias afins atravessaram tempo e espaço. Estão em mim, estão em você. Portanto..."

Na fala, talvez, que vem de não sei onde.

- Eu sou seu nada que tudo oferece, mas você não me conhece nem busca conhecer...

Qual fala?

Quem sabe?

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