A
JANELA
(parafraseando "O Corvo" de Edgar
Allan Poe)
Umberto Krenak
Era noite, eu bem me lembro, silente e triste Setembro,
Sozinho no apartamento, absorto em leituras tais,
Que mal ouvi o abafado, surdo, ligeiro e ritmado
Toque na janela ao lado, aberta para o grande parque.
"É um pássaro - pensei - fugindo do frio parque.
Sim, é só isso e nada mais."
De novo imerso em leitura; do silêncio, a ruptura:
Um ruído diferente, como se patas animais
Arranhassem sutilmente a superfície lisa e dormente
Da janela à minha frente. Apurei bem os ouvidos:
"É esse maldito vento castigando os meus ouvidos.
Sim, é isso e nada mais."
Eis que o pano da cortina subitamente se aproxima
Dos meus pés, e o vento frio de histórias fantasmais
Percorre-me todo o corpo, acordando antigo corvo,
Hierático e soberbo, de um poema secular.
"Tolice"- murmurei - "É um velho poema secular
Me impressionando. Nada mais!"
Levantei-me lentamente e caminhei reticente,
A fazenda se esbatia em dobras tão anormais:
Puxando o pano de lado, agora frio e molhado,
Percebi que no telhado da casa de antigo vizinho
A garoa desenhara - "Ou será o próprio vizinho?"
Um desenho. Nada mais.
Estático e impressionado pelo retrato estampado:
Um segundo do passado, cravejado de sinais;
Poucos riscos mal traçados, pelo pó emoldurados.
"Silene"- suspirei, calado. Talvez minha consciência...
"Mas não pode ser verdade. Isso é minha consciência
Apenas isso. Nada mais."
Escancarei a janela e tentei em meio àquela
Névoa tênue e persistente aproximar-me mais e mais.
Inútil, pois o rubro rosto, estático e lindo rosto
No telhado ao lado exposto continuava inalterado.
"É a garoa, e o vento; o sentimento inalterado
Me assombrando e nada mais."
Volvi ao leito, e a chuva fina tamborilava sua sina
Agora mais forte e célere, em batidas desiguais.
Retornei, pois, à janela. Em vão, lá estava ela,
A sorrir-me, a face bela. Não a máscara de cera
Da página derradeira. A palidez da morte é cera.
Inerme cera. Nada mais.
Girando o dorso, no entanto, eis que a vejo junto ao canto,
Em frente ao busto de Atena, entre sombras colossais.
O mesmo gesto de espanto, as mãos sobre o mármore branco...
Procurei, aos solavancos, entre os dedos o gatilho.
"Nada, nada entre os meus dedos, nem os gritos, nem gatilho.
Pura ilusão. "Não mais!"
Desde aquela noite antiga, assombrada e mal-dormida,
Vozes, pessoas mortas, de terrenos abissais
Trazem lamentos perdidos, amigos, medos, castigos,
Assombrando-me com odores, ruídos, visões incolores,
Espargindo suas dores em sombras cinzas, sem cores,
No meu quarto, sempre e mais.
São assombrações malditas, que proclamam vereditos,
Em clamores sempre aflitos, sussurrados dos umbrais.
Às quais clamo em sacrossantos terços bentos, e peço aos santos
Que me livrem, que me livrem. "Me livrem desses tormentos!"
Minh'alma presa, sem alentos, pois que desses torvos tormentos
Não me livrarei jamais.
FIM
Para voltar ao índice, utilize o botão "back" do seu browser.