O
MAR
Talita Salles
O silêncio do mar. O silêncio que nunca se imaginou existir, aquela falta de som que o oceano não possui nas lendas populares, no imaginário humano ou dentro das conchas da praia.
O famoso som do mar. O som que dizem incluir todos os sons e ser por isso o som do universo! Ela nunca havia acreditado nesse som. A canção não passava, para ela, de histórias inventadas na poesia dos antigos. Não cria que algo tão imenso pudesse conter um som próprio, ainda que fosse um caldo de todos os sons, não cria que fosse dele próprio. Estabeleceu para si a busca incansável pelo silêncio do mar, passava junto a ele horas e dias intermináveis, ouvindo, procurando, aguçando seus sentidos mais profundos, caçando o que não poderia escutar.
Nas praias, jogava areia nas ondas procurando a origem de cada som, ouvia o brshshshshshhhhh broooounssshhhh, os grãos de areia se encaixando entre si. Este foi o primeiro som que conseguiu separar do oceano, e sua mente se tornou mais leve ao ouvir aquele tão mais puro e claro que o anterior. Quase acreditou que fosse afinal aquela a canção do mar, porém ainda seu coração procurava.
Passou a ouvir o vento nas ondas, e nas marolas de alto mar. O alto-mar tão silente, contudo tão repleto de som. Era afinal o vento que emprestava ao som do mar aquela nota vibrante vvvvvvvvvh... e mais este foi separado. Sua audição então procurou escutar a vida. A vida submarina, que vive quase completamente calada sob as ondas, e no entanto... tão ativa, repleta de pequenos barulhos. Passou nisso meses, anos, vidas, ela não sabia. Ouviu como nunca, e como nunca maravilhou-se, descobriu que a ela chegava também de longe sons da vida terrestre, transportada pela vasta água salgada, de mil terras e povos, de máquinas e embarcações, de pessoas e animais. E mesmo das plantas crescendo. Todos os murmúrios de atividade, marinhos ou terrestres, estavam lá para serem ouvidos, complementando o som do mar de maneiras tão diversas a cada segundo! Poderia passar a vida a ouvi-los, mas o coração apertou-se. Descartou-os.
Tinha em mãos, agora, um som baixo e profundo, o que restara. Sim, parecia-se com o mar, esse som. Seria essa a voz que o mar não tinha? Foi assim que a dúvida se apossou de sua mente e seu coração, o questionamento de que o mar era vazio, que seu significado nada mais era que a junção de significados externos. Passaram-se anos e ela ouvia o bramido profundo das águas, distinto de qualquer som, e sentia que não havia o silêncio confortante das águas, sentia que não havia paz. A turbulência sempre presente na vida terrena acabou por levá-la pelas idades, pelas experiências, pelo medo, pelo amor, sem nunca dar a seus apurados ouvidos um quê de silêncio, a sensação de que um algo ao menos pudesse não ter seu som.
Passaram-se anos.
Passaram-se eras.
E houve o dia em que, finalmente, seu corpo mergulhou na terra uma última vez. E distinguiu. O som baixo do mar, vinha da terra, das entranhas do planeta azul. Profundo. O oceano só tinha o silêncio. A ele, nada mais restava. A ela, um berço de paz e suavidade silentes. Era apenas ouvi-lo bem.
Houve o dia em que ela ouviu o silêncio do mar.
O último dia.
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