CLAMOR SILENCIOSO
Renata Cabral

Cobriu a cabeça. Não aceitava a idéia de que já era hora de levantar-se. Tic-tac. Tic-tac. O avançar dos ponteiros não a deixava pegar no sono novamente. Tic-tac. Começava a se irritar com o relógio. Tic-tac. O tic-tac confundia-se com as batidas do seu coração. Tic-tac. Lançou o lençol ao longe e levantou-se. Tic-tac. Por um instante hesitou em prosseguir, mas lembrando-se de que já estava desperta o bastante para voltar a dormir, resolveu preparar-se para o dia que começava.

Chegando ao banheiro, abriu a torneira do chuveiro e enquanto a água esquentava, tomava coragem para entrar debaixo dela. Pin. Pin. Pin. Sentou-se no vaso sanitário e pegou o jornal jogado no chão. Folheou-o. Pin. Pin. Pin. Tentou se lembrar se já o havia lido, mas o barulho da água do chuveiro não a deixava se concentrar. Pin. Pin. Pin. Tentou fixar-se na matéria de capa. Pin. Pin. Pin. Tentou recordar-se dos fatos do jornal olhando a data do mesmo. Pin. Pin. Pin. Vencida pelo barulho das águas, tirou a roupa e entrou no chuveiro.

Ainda molhada e lançando pingos de água por todo o quarto, abriu o armário. Nhec. Nhec. Passou a mão por todas as roupas, mas não conseguia se decidir com qual delas iria sair. Nhec Nhec. Pensou no dia anterior procurando não escolher a mesma roupa. Nhec. Nhec. A porta do armário começava a ranger no interior de sua cabeça. Nhec. Nhec. Aquele ranger a impedia de escolher a roupa certa. Nhec. Nhec. Pegou o primeiro vestido que sua mão alcançou para poder livrar-se daquele nhec-nhec infernal.

Já vestida e com as chaves do carro nas mãos, parou na cozinha por um instante. Não sabia o que comer. Ligou a cafeteira. Chú-chú. Tentou desviar sua atenção do barulho, mas àquela altura da manhã isto lhe parecia impossível. Chú-chú. Pegou um pedaço de pão e tentou comê-lo. Chú-chú. Decidiu que sua paciência com sons indesejados já era inexistente, por isso, desistiu do café. Chú-chú. O botão da cafeteira estava emperrado. Chú-chú. Tentou, sem grande sucesso, desligá-la da tomada. Chú-chú. A cafeteira parecia pregada à parede. Chú-chú. Olhou o relógio da cozinha. Tic-tac. Estava muito atrasada. Tic-tac, chú-chú. Pensou em chamar o porteiro para ajudá-la, mas lembrou-se de que da última vez ele demorou horas para desligar a cafeteira. Tic-tac, chú-chú.

O suor começava a pingar de seu rosto. Pin. Pin. O que faria? A esta hora seu chefe estaria assinando sua demissão. Tic-tac. Pin. Pin. Chú-chú. Tentou acalmar-se, pensando e como sairia daquela situação. Tic-tac. Pin. Pin. Chú-chú. Aqueles barulhos irritantes infiltravam-se em suas idéias, atordoando-a. Tic-tac. Pin. Pin. Chú-chú. Lembrou-se da caixa de forças e de que, se desligasse a energia conseguiria desligar a cafeteira e chegar ao seu trabalho em tempo de pegar sua demissão. Tic-tac. Pin. Pin. Chú-chú.

Abriu a porta da despensa e lá estava a caixa de forças. Nhec. Nhec. Mas qual dos pinos deveria abaixar? Tic-tac. Pin. Pin. Nhec. Nhec. Chú-chú. Estava confusa, ficando sem ação. Tic-tac. Pin. Pin. Nhec. Nhec. Chú-chú. Agora era uma questão de honra. Tic-tac. Pin. Pin. Nhec. Nhec. Chú-chú. Abaixou o primeiro pino, mas a cafeteira, resistente aos seus esforços, continuava funcionando. Tic-tac. Pin. Pin. Nhec. Nhec. Chú-chú. Abaixou o segundo pino, e percebendo que nada acontecia, num impulso, abaixou todos os outros. Tic-tac. Pin. Pin. Nhec. Nhec. Caminhou até a cafeteira e puxou seu fio com a força da irritação que acumulara desde o seu despertar.

Exausta, caiu sentada no chão. Tic-tac. Pin. Pin. Nhec. Nhec. Percebendo que sua última investida contra a caixa de forças havia causado uma escuridão em seu apartamento, desesperou-se. Tic-tac. Pin. Pin. Nhec. Nhec. Desesperou-se e chorou. Chorou tão intensamente e tão alto que todos os pequenos sons desapareceram. O som que ela trazia há tanto tempo guardado dentro de si era de tal forma gutural e assustador que nenhum outro som ousou interrompê-lo. E no meio de toda aquela escuridão provocada por ela em seu apartamento, a única coisa que ouviu-se por horas a fio foi o seu clamor interior. E ela clamava por silêncio.

fale com a autora

Para voltar ao índice, utilize o botão "back" do seu browser.