SILÊNCIO
Marina Salles
Silêncio. O Silêncio que me rodeia. Rodeio o espaço vazio que ocupa a mesa; não vejo a mesa. O Silêncio que me permeia. O Silêncio não me rodeia, nasce em mim, e por ele meus ouvidos não captam nada. Eu sou o Silêncio. Eu crio o Silêncio. O Silêncio que me rodeia. Imagino meu coração batendo forte. Estou tensa, estou nervosa, estou eufórica. Silêncio. Silêncio é esse grito contido. Minha garganta pulsa, e se contrai, quero gritar, e esse silêncio, não respiro, esse grito, meus pulmões expulsando o ar, minha boca molda-se indecisa, sem saber o som que dela sairá, e esse silêncio. Silêncio é esse grito que sinto no peito, meu peito contraído, minhas mãos movem-se sem direção, minhas pernas querem correr, meus pés, ando mecanicamente, respiro, descompassadamente, meu coração bate forte, ando em círculos, rodeio a mesa, não vejo a mesa. Recuso a avelã; nenhuma avelã no mundo pode-se comparar ao que estou sentindo. Silêncio é essa euforia, não saber quem sou. Não sou mais eu, eu ouço o Silêncio. Não estou vivendo mais minha própria vida. Estou vivendo uma vida paralela, a da garota que encontrou um gênio que lhe concedeu três pedidos. Ela pediu todas as coisas perdidas. Toda a sua própria vida em vídeo. Seus pensamentos; silêncio. Silêncio é isso, minhas mãos movem-se sem rumo, meu corpo contrai-se inteiro, não sei o tenho nas mãos, estou eufórica, eufórica, e esse grito contido, esse nervosismo, não caio, não balanço, não sou eu, aqui, o corpo, estou vivendo aquela outra vida. Silêncio é isso, estou suando seco, lágrimas que não escorrem, tremo, vacilo, mas estou absolutamente firme, estou em estado de absurda euforia. Nem sei o que tenho nas mãos. Esfera, estes nomes gravados em linguagens não-conhecíveis, não sei para onde ir. Não sei por onde começar. Os mundos sem fim desdobram-se diante de mim, e por fim os alcanço, todos, por qual começar? Meus olhos se cobrem de lágrimas secas de emoção; mordo os lábios. Vim correndo para cá, não deixaria o momento escapar. Não respiro. Fecho a mão, a esfera está lá, não é pequena nem grande, a esfera me engole. Silêncio é esse grito contido em mim, que a ouço gritar. A esfera que está em sua mão. Alucinação? O medo nos rodeia. O medo de não saber o que fazer ou o que querer. "Para onde?"
É o Mac que me pergunta. Não respondo. O terceiro pedido, alcançar todos os mundos. Meu coração pára. Respiro enquanto as horas passam. Ao acenderem-se as luzes, cedendo o ver aos meus olhos que se abrem, sinto a perda de um momento único. Sou outra pessoa, em outro momento, e a realização de seu desejo já não me causa euforia. Sou sã...e entretanto, não sei, ainda, quem sou. "Para Zigat."
Olho ao redor. A escuridão me envolve. Estou em uma floresta escura; ouço as gotas da chuva que passou ainda pingando dos galhos úmidos das árvores. Ando, ouço meus passos quebrando um profundo silêncio. Paro. A escuridão me domina. Caminho por esta floresta viva, sombria, irreal. Meus pés descalços tocam a grama alta, o mato e o barro frio. Os galhos, as folhas roçam meu rosto, meus ombros, meus dedos. Respiro fundo, inspiro esse mundo secreto como ouso descobri-lo. O cheiro das árvores me desperta e embriaga. Sinto o silêncio. O barulho dos animais da noite, os pingos da água da chuva, meus passos. Admiro as sombras vivas balançando às gotas que derramam-se sobre meu corpo. Bebo o silêncio com os olhos. O silêncio é minha própria sombra, projetada por uma luz fria no muro branco, coberto pelas folhas muito verdes de um maracujá. Não tenho medo. Escuridão, a floresta me recebe. Como um gato, acarinho os galhos, deixando escorrer pela ponta de meus dedos as gotas frias da chuva. Meu coração bate leve dentro do peito. Meus pés tocam o chão suavemente, mal pisando a grama. Escolho com cuidado onde os coloco. Me desequilibro, apóio-me nas árvores. Sinto o cheiro quase agressivo dos musgos e liquens sobre o tronco no qual me apoio. Inspiro fundo. Esse cheiro vivo me anima. Continuo a andar, incansável. Não sei onde quero chegar. Apresso o passo. As árvores me circundam. As gotas frias escorrem das folhas muito acima de minha cabeça, caindo sobre meu corpo. Ando sem fazer barulho, sem medo, sinto-me livre. Não sei onde vou, porém não me perco. Sinto-me em casa, como se houvesse nascido e crescido ali, entre as árvores que me rodeiam. Como um animal selvagem, percebo a floresta, e a amo com um lar. Sinto-me nua. Os galhos gelados roçam meu corpo quente. O frio da noite me invade. Abro os olhos. Me divido em duas pessoas, duas vontades diferentes me guiando uma para cada lado, em conflito. Meu coração bate rápido. Respiro pesado, silenciosamente. Silêncio, é o grito que não soa em meu desespero mudo. Não sou capaz de libertar-me, de quebrar o silêncio. Ela vira-se e anda. Firme, apressa o passo, sabe exatamente aonde vai. Vejo a lâmina reluzir a uma luz fria; ela tira a espada do barro e a empunha com uma graça selvagem, com uma força e uma firmeza tranqüila. Ela balança a espada, e ouço a lâmina cortar o ar e o som. Quebrar o silêncio. Sinto a fúria de seus movimentos. E a beleza dessa fúria selvagem. Súbito, a lâmina encrava em seu peito, rasgando-lhe a carne, abrindo-lhe o coração ao vento. De resto, silêncio. Esse grito profundo de dor, cortando silencioso a noite. Esse grito que só eu ouço. Largo a lâmina fincada no barro, coberta de sangue, manchando a grama. Meu coração treme. Silencioso o sangue escorre em seu corpo. Eu a olho. Observando aquela outra vida. Eu a vejo cair, os joelhos cobertos de barro, as mãos frias arranhando a grama, seu rosto tocando as folhas molhadas, eu corro. Corro por sob as copas das árvores, corro com todas as forças para longe daquele momento, corro sobre a grama alta, o mato e o barro molhado, até ouvir o som de meus passos na grama tornar-se o som de passos sobre a pedra, e paro. Seguro meu peito com as mãos, mas não há sangue, não há dor, não há nada. Respiro fundo. Não há sequer a dor da perda para se sentir. Ilusão? Meus olhos fixam-se no lago à minha frente. Meus pés, descalços, tremem na água fria. Miro a margem oposta. Tremo. A indecisão se alastra por meu corpo cansado. Arrisco alguns passos; silêncio. O Silêncio que me rodeia. Estou no meio do lago, meus passos não fazem barulho, nenhum animal se move, nem as gotas acordam as notas. Apenas Silêncio. O Silêncio me rodeia e permeia. Não sou mais o Silêncio. Ele está fora de mim, ao meu redor, e dentro de mim. Não mais crio o Silêncio: ele que me cria, faço parte dele. Atravesso o lago. Fito o céu arroxeado, meio estrelado, meio nublado, e um sentimento de perda se apodera de mim. Não estou tensa ou nervosa, mas tranqüila e despreocupada. Mas pedi-me em mim. Tive medo, medo de não encontrar-me. Agora, sinto falta dela. Sorrio. Imagino meu coração batendo leve. Um campo de flores coloridas, brisa, céu azul, borboletas. "Onde estamos?", pergunta o Mac. "Em Zigat.", ela responde. Eu rio, quebrando a avelã, e ela olha a esfera em sua mão, radiante. Eu, ah, sim, eu sei onde eu estava... em Zigat.
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