O SILÊNCIO DIZ
Felipe Lenhart
Acabo de voltar de Porto Alegre, do III Fórum Social Mundial. Lá, assisti ao lançamento oficial, mundial, por que não dizer, do jornal Brasil de Fato, que será mantido por movimentos sociais e a esquerda brasileira. Pela multidão que reuniu, pela presença de tantos "cobras" no evento, o jornal, parece, vai longe. Eram três, cinco mil pessoas cantando, dançando, aplaudindo cerca de 20, 30 autoridades em cima de um palco, no auditório Araújo Viana, numa praça da cidade. Na platéia: gente do MST do Brasil, do MST (Movimento dos Sem Trabalho) da Argentina, gente da Bolívia, da Colômbia, da Venezuela, gente de todo lugar. No palco: Aleida Guevara, filha do Che, Hebe Bonafini, em
nome das Mães da Praça de Maio, João Pedro Stédile, Sebastião Salgado, Eduardo Suplicy, Olívio Dutra e mais um monte de "autoridades".
Entre essa gente, um escritor, que para mim é um mestre, o uruguaio, escritor e jornalista, Eduardo Galeano. Foi a primeira vez que o vi de perto, ao vivo. Prestei atenção nele: o que diria sobre o jornal? Que coisa misteriosa ele iria dizer? Grudei os olhos no velhinho: ele se sentou entre o Sebastião Salgado, de quem é bem amigo, pelo que pude perceber, e a Hebe Bonafini. Dali a pouco, enquanto todo mundo discursava, ele puxou uma caneta e se pôs a escrever. Pensei: não acredito, o cara vai escrever o discurso dele agora, um pouco antes da hora - à mão!!! E foi mesmo. À mão eu já sabia: ele escreveu em algum lugar que não consegue bater à máquina, e que quando comprou um computador, sua casa foi roubada - e a máquina foi levada. Compenetrado, coçando a cabeça, pensando, os olhos no infinito, a mão segurando a testa, tomando água, a caneta em ação.
Seu nome foi anunciado, ele levantou, sob uma chuva de palmas, assovios, gritos, vivas, fanfarras, ergueu uma das mãos, dando tchau, e se dirigiu ao "parlatório", digamos, improvisado. Então começou. Que texto! Escrito em 20 minutos, um baita texto. E, como todo escritor, ele fala como escreve: a leitura respeitou as vírgulas, o que garantiu o estilo inconfundível dele até na hora de falar. Entre muitas coisas, contou uma história da tradição maia.
Contou que os deuses, antes de nos criarem feitos de milho (somos feitos de milho, por isso temos todas as cores e dores, por isso somos especiais!), fizeram inúmeras tentativas, e fracassaram em todas elas. Fizeram-nos, por exemplo, numa tarde em que estavam aborrecidos, aborrecidíssimos, feitos de madeira, e tudo foi perfeito. Mas, em pouco tempo, descobriram que os homens e mulheres de madeira só falavam palavras vazias, frases vãs. "Falam mas não dizem", sentenciou o mestre. A tradição registra que os deuses então exterminaram todos os seres humanos feitos de madeira. "Eu não quero faltar com o respeito à tradição americana mais antiga, mas me parece que, nisso, se equivoca. Os homens e mulheres de madeira estão lamentavelmente vivos - e são os amos do mundo", disse.
Outra coisa que disse, e que o irrita bastante, é que certa esquerda, ao fazer jornalismo, pretende ser "a voz dos que não têm voz". "Assim como creio que lamentavelmente sobreviveram uns quantos homens e mulheres de madeira, que falam mas não dizem, também creio que muitos companheiros se equivocam quando dizem ser a voz dos que não têm voz." E mais: "Todos temos voz, todos temos algo que dizer aos demais, algo que merece ser pelos outros celebrado, ou pelo menos perdoado. Essas vozes, daqueles que se presume que não tenham voz, estão condenadas ao silêncio, durante séculos estão condenadas ao silêncio. Mas até esse silêncio tem sido capaz de dizer calando, porque há duas maneiras de dizer: uma é dizer falando e a outra é dizer calando. E às vezes o silêncio sabe ser mais
eloqüente e mais poderoso que muitas das palavras que se pronunciam em vão neste mundo que as despreza."
Nem preciso comentar as palmas, a ovação que foi isso tudo.
O silêncio, essa voz que não fala, mas sempre diz...
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