LEMBRANÇA
MARROM
Beto Muniz
O menino enrolou o cordão no pião com a habilidade que a brincadeira pedia. Tinha os joelhos ralados como o bojo do pião, dedos magros de machucados sujos como a ponta de aço enferrujada e um barbante velho e encardido como o calção que vestia. Eram da mesma cepa, pião e menino. Num gesto rápido em direção ao piso de terra batida o pião foi arremessado. Vacilou em rodopios de voltas largas, parecia um bebê desorientado procurando o colo da mãe. Depois foi se acalmando como se fosse uma criança que pretende dominar o espaço e ser imperador do mundo. Cresceu. Estabilizado em rodopio bailarino o pião se confundia com um adulto que domina sereno seu lugar ao sol. O tempo quase que parou, mas por ser eterno cobrou a ambição do pião que girava encantando os olhos do menino. Assim, bamboleando como um velho que chega ao final da vida e não carrega a mesma segurança de outrora, o pião girou bêbado em busca de um local para dormir. Volteou sobre o bojo ralado escrevendo sua agonia na terra vermelha, que já mostrava vários sulcos, e parou. Morreu voltando a ser só um brinquedo. O
menino, impassível ao poema que fizera, prendeu uma ponta do
barbante no bico enferrujado e começou a enrolar enquanto escolhia
o local do próximo arremesso. Prendeu a outra ponta do cordão
entre os dedos fura-bolo e pai-de-todos, que se fecharam firmes, e lançou. O menino, insatisfeito com a brevidade da brincadeira, iniciou outra rotina. Prendeu o barbante na ponta de aço enferrujado e começou a enrolar enquanto espiava o chão marcado por inúmeros sulcos. Dobrou seus joelhos ossudos, acariciou a terra com a palma da mão apagando os caminhos escritos pelo pião carcomido e se levantou. Prendeu a ponta do cordão entre seus dois dedos vermelhos de terra e suor, escolheu o local de arremesso e lançou. Ao cair no terreiro, o pião oscilou entre os riscos aplainados pela mão do garoto e derrapou na areia pendendo para os lados. Estava inseguro, parecia um bebê que após uma queda se levanta indeciso. Depois se acalmou. Como se fosse um moleque que espera castigo aquietou-se por um instante volitando sobre seu bojo sujo. Dormiu criança, despertou adolescente diante da trincheira camuflada com poeira e fugiu cambaleante feito um adulto em desespero diante da morte. Depois se aventurou em voltas largas sublimando qualquer noção de presente, passado ou futuro. Até o tempo, que parecia correr, parou por instantes eternizando o encanto do garoto que espiava a brincadeira sendo desenhada na terra. Lentamente o pião foi se tornando rijo como um velho paralítico, sabia-se que ele girava pela confusão das cores em alta velocidade desfocando os machucados e ralados no bojo... E essa é a última lembrança do menino. O tempo desistiu da madeira bojuda que rodopiava em poeira marrom e avançou sobre o garoto. A poesia escrita na terra se apagou. O menino cresceu e perdeu seu barbante encardido. Perdeu a habilidade com o pião. Perdeu até mesmo o contato com a terra vermelha e só lhe restou a memória que no silêncio da madrugada rompe uma a uma as malhas do esquecimento até abrir rasgos por onde a lembrança escapa carregando consigo algumas histórias que são contadas entre um cigarro e outro. Porém, são rasgos minúsculos que não permitem recordar aonde foi guardado o velho pião. |