Adlai
Hoartmann uma história de amor, sexo, morte e ciúme | |
A gota de suor escorreu pela fronte do motorista e foi imediatamente removida com o dorso da mão. A estrada era reta, de chão batido e pedra cascalho. Os viajantes estavam em silêncio dentro da boléia. A caminhonete não era tão velha quanto parecia, só estava judiada pelo uso constante nas estradas esburacadas. A cada solavanco os passageiros eram lançados como marionetes para cima, para o lado e finalmente de encontro ao assento de tecido grosso, suado e encardido. Não era um veículo confortável, mas quando chovia não ficava atolado. Era útil, apesar de duro e desconfortável. Érica gemeu quando um solavanco mais forte a fez dançar como boneco de espetáculo circense. Ela estava espremida entre Diego e Josimar. Os três estavam acalorados e cansados, seus olhos se apertavam contra o sol a pino e a poeira que o carro da frente deixava para eles comerem. Era um comboio de três veículos, apenas. No carro da frente viajavam quatro pessoas e no de trás mais duas. Uma trupe de teatro: Cia Palcomeu. Anderson pilotava o primeiro carro, que era o mais confortável. Diretor e dramaturgo do Palcomeu, com ele viajavam mais três integrantes do grupo: Michele, Marcela e Thiago. Marcela, homossexual assumida, apostava com Thiago, o caçula do grupo, que na próxima cidade a se apresentarem conquistaria mais garotas que ele. Érica era melhor atriz que suas duas amigas, mas casada com Diego suportava o desconforto na caminhonete do marido. Fechando o comboio vinham Fabiano e Hallana. Enamorados. Para desgosto de Michele. Ele cuidava do cenário, iluminação e som. Ela investia na dramaturgia e tinha Anderson como seu mestre. Todos discípulos do método Stanislaviski, acumulando funções que garantiam a apresentação da trupe. Não escolheram atuar nos teatros mais recônditos do Brasil, apenas assinaram compromisso com um órgão federal e durante três anos deveriam obedecer ao patrocinador. Acordo mal feito, pouco dinheiro e teatros escolhidos por figurões da política com trânsito livre no Ministério da Cultura, mas quando surgiu a oportunidade os recém-formados só pensaram em ganhar experiência e conquistar espaço na profissão. Se não fosse o contrato firmado já teriam desistido na primeira cidade. A trupe parecia mais pobre do que realmente era. Talvez fosse culpa daquelas paragens, onde cada centavo valia por suor deixado na poeira do caminho. Realidade que os integrantes do Palcomeu haviam aprendido nos primeiros dias de estrada e, exatamente por isso, no porta-malas do carro que puxava a fila, viajava, acondicionado em caixa especial contra pó e luz, a peça principal da apresentação: o vestido de noiva. Branco com adereços de pérola. Lindo! Fora usado pela primeira vez no casamento de Érica e depois cedido como solução de economia. Nos últimos dois anos, Érica o vestia todos os finais de semana e, provavelmente, o usaria nos próximos onze meses encarnando a protagonista do drama de Nelson Rodrigues. ***** As horas foram passando e o sol começou a descer. A maioria da trupe dormia, embalada pelo balanço dos carros, do calor da estrada e do cansaço pelo tempo transcorrido. Não viam a hora de chegar à próxima cidade e poder tomar um banho; isso se o hotel que fossem ficar não fosse tão horroroso quanto o da cidade anterior. Marcela, com sua voz rouca e forte foi a primeira a notar a extravagância que era o hotel que haviam ficado no outro dia. Construção antiga, metade de madeira e uma parte metade de tijolos recém feita. Como a maioria das casas daquela cidade, a parte de cima do hotel acabava em uma laje, com os vergalhões de ferro, já enferrujados, retorcidos pela brincadeira das crianças do dono do hotel, Sr. João. As madeiras cheiravam a desinfetante misturado com mofo e as tábuas eram cheias de furinhos, "cupins", pensou Marcela. Como não havia banheiro nos quartos, Marcela andou pelo corredor escuro do hotel procurando o lugar para poder aliviar sua bexiga. No final do corredor achou uma porta pintada à mão, com letras que pareciam ser feitas com uma caligrafia da primeira série do primário. Pelo que ela podia entender estava escrito "Bãieiro"; deduziu que seria o local que estava procurando. Abriu a porta e não acreditou no que viu. Ela dava para um espécie de terraço, todo cheio de areia. O cheiro de urina e fezes emanava através da areia e ela podia notar os montículos aonde deveriam estar enterrados os "torpedos". Do lado da porta achou uma pequena pá; logo acima uma plaquinha com os dizeres: "limpi a pá despois di usá". Como ela não era de se afetar por estas coisas, pegou a pá, andou calmamente pelo terraço, desviando dos montículos e escolheu um lugar que poderia considerar que estava limpo. Depois de se aliviar no buraco que havia feito, pegou a pá e jogou areia dentro, tapando-o. Marcela foi despertada de suas lembranças pela chuva que começara a cair. A noite já se pronunciava e tiveram que fechar as janelas do carro, já inteiramente empoeirado. A lama começava a aparecer na estrada e os carros dançavam de um lado para o outro, parecendo que estavam sendo dirigidos por bêbados. Anderson, o motorista do carro da frente, já estava exausto. Dirigira por mais de oito horas, sem descanso, e aquela chuva só viera para atrapalhá-lo ainda mais. Não conseguia enxergar direito a estrada e as suas pálpebras não estavam ajudando a situação. Caiu no cochilo por um breve segundo e o carro dirigiu-se levemente para a esquerda, batendo violentamente a roda da frente na cerca ao lado da estrada. Com o solavanco o bagageiro abriu-se e a caixa com o vestido de noiva, branco e impecável, saltou para fora. O carro que vinha em seguida freou bruscamente para não bater nos companheiros da frente, mas acabou atropelando a caixa do vestido que havia caído. Com o impacto, a frágil estrutura de madeira foi quebrada e o vestido caiu na estrada repleta de lama. Os três carros pararam e todos saíram na chuva torrencial para ver os estragos. O carro da frente estava parado na cerca com um farol quebrado e o pneu furado. O segundo estava intacto, mas o mesmo não se podia dizer do vestido de noiva embaixo do pneu dianteiro. Marcela largou logo um "putaquepariu" e todos pensaram a mesma coisa. A chuva continuava a cair e ainda estavam a trinta quilômetros da cidade. ***** Érica foi se aproximando do pneu, de mãos dadas com Diego. Ficou imobilizada com o que acabara de ver. Deu um grito seco e profundo. Não podia acreditar no que via. O seu vestido de noiva, aquele que ela havia doado com tanto carinho e dor no coração, estava ali, reduzido a lama, trapos e farrapos. Começou a chorar compulsivamente. Uma mistura de cansaço e desespero tomou conta dela. Diego, numa tentativa inútil de protegê-la, abraçava-a tentando transmitir amor e lucidez. Fabiano, para disfarçar as lágrimas que sentia aflorando, começou a trabalhar rapidamente na troca do pneu furado do carro de Anderson. Nenhum dos outros pareceu perceber a movimentação do rapaz que, ajoelhado na lama, girava a chave de mão. Todos estavam mudos. Parecia que o tempo tinha parado e a sensação que percorria o grupo era de susto, seguido de profundo desconsolo. Primeiro pela reação de Érica, e depois pela extrema falta que o vestido faria. Ninguém ousava abrir a boca. Até mesmo Anderson, que sempre conduzia os problemas e as soluções da trupe, se encontrava, ainda, sem movimento que demonstrasse alguma luz no fim do túnel. A chuva começou a diminuir e um vento, vindo não se sabia de onde, começou a causar em todos um arrepio de frio e medo. Podiam ver o horizonte apenas nos momentos em que os raios, ao longe, iluminavam a escuridão daquele noite que parecia não ter fim. Estavam numa estrada deserta, em algum lugar perto do fim do mundo, sem nenhuma forma de comunicação e começaram a pensar em sair dali o mais depressa possível. Foram tirados daquele estado pelo mugido ensurdecedor de uma vaca que estava deitada a alguns metros deles, encostada à cerca que "atropelou" o carro. Todos entraram correndo nos respectivos carros, assustados e dispostos a sair dali imediatamente. Por sorte, Fabiano já havia terminado a troca do pneu e todos os carros estavam funcionando. Em poucos segundos já estavam tentando percorrer os últimos fatídicos trinta quilômetros que faltavam para chegar àquela maldita cidade. - Não fale assim, Érica. Deus castiga! Não é maldita. - Como não é? Tudo deu errado aqui - e soltou aquele grito de novo - Esquecemos o vestido lá na estrada. Como sou azarada, na correria ficou lá e nem um pedacinho dele vou poder guardar. Quero voltar para casa! Você é culpado de tudo. Foi você que teve esta maldita idéia de viajar como artista. Diego pensava, desesperadamente, em algo que a acalmasse e trouxesse alguma paz para a vida dele naquele momento. - Docinho, tenho uma idéia! Podemos transformar esse pequeno incidente... Foi interrompido. - "Pequeno"? Pequeno porque não era seu. Não foi você que passou noites e noites imaginando o desenho das alças trançadas nas costas, a altura do corpo que disfarçaria minha baixa estatura e a quantidade de enchimento que teria que ser colocado na altura dos seios para disfarçar a minha total falta deles. E o carnê? Lembra? Paguei em doze vezes e você nem se ofereceu para pagar nenhuma! E vem, na pior hora da minha vida, dizer que foi um "pequeno incidente"? Eu odeio você! Você é insensível, puxou ao seu pai! Pobre Diego, perdera uma ótima oportunidade de ficar calado. Mas continuou falando, enquanto alisava seus cabelos e acariciava seu braço. - Docinho, tenho uma idéia. Precisamos de outro vestido para você trabalhar amanhã, certo? Podemos chegar na cidade promovendo um concurso. Pense bem, podemos oferecer dois convites a quem nos trouxer um vestido de noiva usado, em bom estado. E olha, ainda podemos oferecer um lugar de destaque na platéia, com homenagem e agradecimento a quem fizer a doação. Já pensou? Isso dá prestígio nas cidades de interior. Ainda vai nos promover. Todo mundo vai querer ver a moça que usa o vestido de noiva. Ela começou a engolir os soluços e ele enxugou suas últimas lágrimas. Respirou um pouco aliviado. Parecia que pelo menos ela tinha se acalmado e as primeiras luzes da cidade já podiam ser vistas no horizonte. Diego respirou fundo. Estava cansado, exausto, e amanhã seria um novo dia. Hoje, porém, ainda havia tempo para comer alguma coisa. ***** As primeiras luzes da cidade também eram as últimas, Piracema do Tocantins parecia menor que o pontinho, no mapa, assinalado. Anderson desceu do carro e estralou os ossos da coluna fraturando a preguiça e o cansaço, sorriu olhando ao redor, coçou o peito, olhou para trás: - Saíam do carro, Michele e Marcela, disse mostrando a cidade com um movimento de dedos. - Caralho! Ca-ra-lho! Tudo isso? Michele procurou no relógio, bocejando: - Hora da janta! Apertou os olhos bem forte e depois os abriu, ainda acordava. Thiago, aliás, dormia. Marcela abraçou Anderson pelas costas. Os outros dois carros chegavam logo atrás. Diego cutucou Érica, ressonava ainda na ressaca do choro: - Acorda bebê, chegamos. - Hum? - Chegamos. - Onde? Diego deu uma olhada ao redor, retirando a chave da ignição: - Lugar-nenhum. Ela sorriu incondicionalmente. Fabiano abraçou-se e gemeu, vestiu a camiseta, o vento frio do hálito da chuva, Hallana colocou as mãos no bolso da calça dele e o beijou na nuca: - Bi, tô com fome. - Eu também, tenho uma fuinha carnívora revirando meu estômago. Dirigiu-se a Anderson, que dizia alguma coisa a Diego: - Vamos comer alí? - apontou o bar do outro lado da rua, uma lâmpada só iluminando a entrada, uma porta só, de madeira, um cliente só, bêbado já e que não vale a pena ser introduzido na história, solitário como o copo de pinga que descansava sobre a mesa, um cachorro só, sarnento, coçando as orelhas, um balconista de toalhinha parda e suja na mão limpando as três mesas de metal que não estavam ocupadas e sorrindo seu melhor sorriso de boas vindas: - Vocês são os atores de novela que o prefeito contratou, né? Puxou a cadeira para Anderson que dizia sim com um sorriso desconfiado: - Somos e não somos. - Como assim? - Somos do teatro, Cia Palcomeu. O balconista não conseguiu esconder a decepção: - Ahhhhh sei, o PF aqui é tamanho único mas a comida é boa, arroz, feijão, bife, tomate e cebola. Diego bateu nas costas de Fabiano, sentavam-se a uma das mesas: - Shakespeare, aposto, nunca fez algo parecido. - Hehehe mas ainda prefiro cinema. Sentaram-se Diego e Érica (adormecida ainda em seu ombro). - Acorda, acorda? Na mesma mesa, Fabiano e Hallana, abraçados. Na outra mesa, Anderson, Michele e Marcela. - Cadê Thiago? - Dormindo, o puto. - Vou lá boliná-lo por baixo das calças. - Agora que o vestido está fodido... - ...nem lembra, nem lembra. Diego tapando os ouvidos de Érica que acordou de vez e desviou-se do abraço dele: - Agora que o vestido está fodido, a peça está fodida, só isso. - Cinema, amigo, cinema! Só faço teatro porque sou um fodido em um país fodido. - Tem Coca? Vou encher a cara de Coca, aliás, idéia idiota aquela do concurso. - Pra que iluminação em teatro, me diz? Fotografia de porra nenhuma. - O texto é o que importa, ainda temos o texto. - Que leiam livros, então. - Só estava tentando te ajudar, de algum jeito ué, tem jeito pra tudo. - Coca-Cola, por favor, parei com isso. - Por falar em texto, prefiro a imagem. Anderson se identifica ao balconista: - E qual o seu nome? - Meu nome é Lupicínio, sou dono de boteco mas sempre quis fazer samba, um dia e eu ainda vou pro Rio ser famoso dizendo samba. - Ainda temos que ir à casa do prefeito, sabe onde é que fica? - Logo alí do outro lado, a casa mais bonita da cidade, onde daqui a alguns dias vai morar a moça mais bonita da cidade. O balconista Lupicínio olhou para o fim da rua como se fosse o fim do mundo, com os mesmos olhos de doce em compota que se derretiam das órbitas ao ver a moça mais bonita de Piracema mas logo acordou, concluíndo: - Mas essa história só valeria a pena se fosse novela das oito. ***** Amanheceu. Diego saiu sozinho do quarto - o hotel era bem razoável, aliás - e foi dar uma volta nos arredores. Era um dia dos quase perfeitos - céu azul, sol macio, cheiro de mato. Embrenhou-se numa picada que ia dar sei lá onde. Depois de caminhar por bons dez minutos, chegou a um rio. Percebeu logo um vulto branco na outra margem. Esfregou os olhos e viu surgir a imagem de uma mulher lavando as pernas nas águas tépidas. Agachou-se para ver melhor. Ela tinha o vestido no alto das coxas e acariciava as pernas, num gesto que lembrava um comercial de sabonete. Num gesto de puro instinto, mergulhou e saiu às braçadas. A moça assustou-se ao vê-lo se aproximando. Desviou-se da correnteza e nadou até poucos metros dela. - Oi, tudo bem? - perguntou já quase sem fôlego. - O que você quer? Quem é você? - ela respondeu fechando as pernas descobertas. Mais uma dúzia de braçadas e já estava sentado no meio-fio, a roupa grudando no corpo. Sentou-se ao lado dela com um olhar de raposa. - Oi, meu nome é Diego. Cheguei com o pessoal do teatro. - Vocês que vão abrilhantar a festa de sábado? - Isso. Mas o que está fazendo aqui a esta hora? - Eu sempre venho aqui, gosto de sentir a água do rio escorrendo nas pernas. Diego sentiu a testosterona borbulhar no fundo do bolso encharcado. - Você é muito bonita. O que está fazendo neste fim de mundo? - Eu nasci aqui. Além disso, caso no domingo. - Vai casar de véu, grinalda e vestido de noiva? - E meu pai vai dar festa no sítio. Feito uma velha Facit, os olhos de Diego computaram as informações em décimos de segundo. Empunhou o melhor olhar que pôde lembrar, alguma coisa entre Clark Gable e Brad Pitt. Pousou a mão no joelho a garota. Sentiu o arrepio da pele correndo veloz até entrar no esconderijo da saia dela. Ela fechou os olhos por meio segundo. Ele percebeu o efeito e continuou: - Você é tão jovem, tão bonita. Não acha que devia viver a vida antes de casar? - Eu... bem, eu tenho que casar. - Está grávida? - Deus me livre! Meu pai acertou tudo com meu padrinho. Eu já tenho dezoito. A mão sobe mais um pouco. Uma nova corrente de arrepios sobe coxa acima da menina. Diego já se sente dono da situação. - Você conhece São Paulo? - Conheço não. Só na televisão. É grande, né? A mão sobe mais, quase chegando ao limite da calcinha. Ela estremece. O rosto rubro não disfarça uma mordida leve nos lábios. Ele a toma nos braços e sapeca-lhe um beijo de língua. Ela se entrega macia, o corpo amolecendo feito geléia. Quando encosta a mão no umbigo dela, ela solta um gemido longo. Desce a mão sob o elástico. Sente um rio escorrendo. Ela grita ao primeiro toque, agarra Diego pelo pescoço em fúria. Ele se livra das roupas, afasta a barreira da calcinha e se solta dentro dela. Sentiu que não era virgem e foi até o fundo, até onde pôde controlar. Ela espumou, lavou o desejo. Contraía-se em espasmos. Gritaram ecos nas árvores, secaram o rio. Ficaram assim, atados por minutos eternos. Quando voltaram do gozo, os olhos dela pediam: - Mais, mais! Rolaram na beira do rio, entre pernas e lama. Ela urrava de prazer com as pernas agarradas nas costas dele. Passados aqueles minutos selvagens, viram-se olhando nos olhos. Os olhos dela eram grandes, abertos, falando doçuras e paraísos. Ele se recuperou do arrebatamento. - Princesa, me faz um favor? - pediu ainda dentro dela. Ela falou num gemido: - Tudo que você quiser... - Me empresta teu vestido de noiva? Devolvo domingo de manhã. A menina ficou indecisa, em silêncio, sem saber bem o que responder. - Eu vou pensar, disse finalmente. Vou pensar e aí passo no hotel, tá bom? Qualquer que seja a resposta, te aviso. ***** Diego mergulhou novamente no rio, e ao sair do outro lado a roupa estava limpa das manchas de barro e de amor. O sol foi secando a roupa no caminho de volta. Súbito Diego deu um tapa na testa: - Como é o nome da garota? Eu preciso parar com essa mania de comer garotas sem ao menos perguntar seu nome. A sala que servia como restaurante do hotel estava vazia, e o elenco repassava o texto mais que decorado: método. Há que se ter método! Esse era o lema do diretor do espetáculo. Depois de dois anos, ninguém agüentava mais repetir as falas nos ensaios. Josimar sabia como interromper o martírio: - Porra, Wandernelson, ... - Wandernelson, não! Wandernelson, não! Anderson! Anderson! O diretor saía do sério ao ser chamado pelo nome de batismo, e só não saía no braço com o Josimar porque este era um mulato forte pra cacete, jogador de capoeira, parada indigesta, apesar de viado. Quer dizer, viado, mas muito macho! Inclusive o Thiago, mascote do grupo, às vezes tinha que comparecer, dar um trato no crioulo, sob pena de tomar uma dura: - Vai fundo, senão tu leva uma bifa! A cidadezinha suburbana tirava o tesão da turma. Todos representavam por obrigação, por contrato, na marra. Agora, sem o vestido, a coisa tomava outro rumo, e podiam fazer corpo mole com justa causa. E estavam assim, de papo pro ar, quando apareceu a menininha jeitosa com um pacote nas mãos. - O Dieguinho está? Érica se aprumou na cadeira: - Quem é você? - Eu vim trazer o vestido de noiva emprestado. O grupo se entreolhou em busca de explicação, mas o único que podia esclarecer o assunto estava dormindo. Anderson (Wandernelson) se adiantou e tomou conta da situação: - Você vai emprestar um vestido de noiva pra nós? - Vou, com uma condição: depois do espetáculo eu quero fugir com vocês. Thiago gostou da idéia: ela era jeitosinha. Marcela adorou a idéia: ia tomar conta dela. Érica ficou cabreira: o quê que o "Dieguinho" andou fazendo com a... a... a... como é mesmo o nome dela? ***** Ao mesmo tempo em que a visita/ensaio se desenrolava no salão do restaurante do pequeno Hotel, no gabinete do prefeito o assessor avisava: - Pronto, prefeito. Meus cabras já confirmaram a chegada do pessoal da televisão. Estão todos no Hotel. O senhor quer alguma providência? - Quero ir lá conhecer os atores. Dizem que tem umas moças interessantes. - Cuidado, prefeito, seu pai avisou que não quer confusão nenhuma, não até o dia do teu casamento, que é logo amanhã bem cedo. - Fica tranqüilo, Broncoso, você não vai ter trabalho nenhum comigo e se o Coronel perguntar, avisa que fui lá só pra recepcionar o pessoal, sabe como é, meu pai sempre gostou de demonstrar a famosa hospitalidade interiorana e, afinal, não é ele mesmo quem queria uma foto com todo mundo junto? Então... - Tá certo, mas só por garantia, eu vou junto. - Então vamos, avisa aí pra Dona Margarida que o prefeito teve um compromisso urgente e só volta a despachar semana que vem, depois da lua de mel. Vamo embora pela saída particular. - Num instantinho a gente chega no Hotel... ***** O menino pequeno e descalço entrou esbaforido no cômodo onde a trupe ensaiava: - Senhor diretor, senhor diretor... - Sou eu, o que você quer, garoto? - A Dona Margarida, secretária do prefeito, mandou avisar que ele vem vindo aqui, pra conhecer vocês... - Certo. Quando ele chegar, avise que estamos ensaiando, mas que iremos recebê-lo. Marcela não entendeu nadinha a cara de espanto da dona-do-vestido (mas qual é o nome desse piteuzinho, afinal de contas?) que, de súbito, muito nervosa, agarrou seu pescoço e começou a chorar. Que estranha reação era aquela? Será que tinha finalmente acertado? Nossa, mas ela nem tinha cantado a moça ainda... - Senhor prefeito, quanta honra... O aperto no pescoço foi tamanho que Marcela quase desmaia. Mas que tava bom, ah isso tava... E as carícias se confundiram com afagos, que eram retribuídos com mais aperto e desespero. O que uma situação de stress junto com uma carência afetiva não fazem... ***** - O que houve, senhor prefeito, algum problema? O senhor está tão pálido! - É... - gaguejou o pseudo-corno já quase engolindo a própria saliva. - Foi a emoção de estar pela primeira vez com um grupo teatral? - Parece que eu conheço aquela mocinha ali! - apontou, tremendo, em direção à mocinha sem nome. - Não é possível, senhor prefeito, a moça faz parte do grupo que chegou conosco, seu nome é Marcela. - respondeu logo o diretor, tentando disfarçar a presença da ilustre desconhecida amiga do Diego, "El Don Juan" do grupo. - Não, porra! Eu não tô falando da "malhadora machona", não! Tô querendo ver direito a outra mulher! A lourinha bonitinha que é parecida com a minha noivinha, a Tati! Quando ouviu seu nome, a desconhecida apavorada tascou um sufocante beijo de língua na Marcela e puxou-a para um esconderijo atrás da cortina mais próxima, deixando atônitos o diretor e o "Prefeitinho Viking". Ambos se olharam e tentaram dizer algumas palavras, mas a força do espanto, causada pela surpresa inesperada sugou suas vozes por alguns segundos... - Anderson? Anderson! Me disseram que a minha amiga sem nome trouxe o vestido de noiva conforme combinamos ontem no rio! - gritou o desesperado e desastrado Diego, sem saber do perigo que corria devido à presença do touro-mór do poder executivo local. Mais uma chicotada de silêncio e espanto invadiu o ambiente. Só que agora eram três os indivíduos que se olhavam paralisados, numa exaltação à aquela bela e famosa canção de Simon e Garfunkel (The sounds of silence). Quebrando o silêncio, o prefeito, muito mais que puto (embora corno), partiu em direção à Diego e perguntou: - Por acaso, meu caro, a amiga que você mencionou e que lhe trouxe esse tal vestido de noiva, é uma loirinha, gostosinha e responde pelo nome de Tati? Diego, contraído mas distraído (como sempre) respondeu: - Bem, ela é loirinha, é gostosinha, muito gostosinha... Mas confesso que não sei seu nome. - Diego, tá maluco? O prefeito está se referindo à noiva dele. Anderson já fazia as contas para o enterro, e pensava em um substituto para Diego, quando a cena, novamente, foi tomada pela surpresa. Antes que o pior acontecesse e alguém se atrevesse a dizer alguma coisa, como se não bastasse o tamanho do rolo formado, um vulto branco se aproximou e fez o que ninguém esperava: atraiu todas as atenções. Era Thiago, trajando uma peruca loira e uma roupa toda branca, estranhamente bonita. Diego, assustado mas agradecendo ao lampejo do destino, perguntou, embarcando rapidamente no set-do-acaso: - Thiaguinho, meu nego, o que você está fazendo vestido de noiva? Thiago, meio constrangido e trincando os dentes: - Diego, meu lindo, você não guarda meu nome mesmo, hein? Vou falar pela última vez. Sou a Renata, viu? Re-na-ta. E eu só vim te mostrar que já trouxe o vestido, e continuo sua amiga. Amiga, viu? O prefeito, que antes já tinha visto duas mulheres se beijando, ficou mais estarrecido ainda ao perceber que o velho e bom Tim Maia (in memorian) não era, naquele ambiente, respeitado em seu refrão mais famoso ("...só não vale dançar homem-com-homem e nem mulher-com-mulher"). Resolveu encerrar a visita e foi-se, com seu acompanhante, sem completar o objetivo, mas pelo menos livre de um susto e convencido de que não era sua noiva quem estava ali quando chegara: - Vamos embora, Anacleto Broncoso. Pra mim, chega. Já vi o que tinha ver. Aqui vale tudo... Diego, mais esperto dessa vez, esperou a visita se afastar com segurança e soltou uma enorme gargalhada: - Maravilha, Thiago!... quer dizer, Renata! Hehehe. Não contava com a sua astúcia, Chapolin... Mas, venha cá, quem deu a idéia? Foi o Josimar, né não? Toma cuidado agora, que ele pode gostar da "noivinha" e querer mexer nessa contabilidade, hein... Inverter com você, trocando o passivo com o ativo. Hehehe. - Hehehe é o cacete, seu filhodaputa. Eu te salvo e você ainda me sacaneia. O que a gente não faz por um amigo e pela arte. Esse papo de "O show não pode parar" tem que ser revisto... Anderson trouxe de volta o tom de seriedade e demonstrou preocupação: - Gente, o papo tá bom, o susto passou, mas o problema ficou: estávamos sem o VESTIDO DE NOIVA, agora o temos, mas temos também a noiva. E justamente a do prefeito da cidade. Como iremos sair desta? ***** Sábado à noite. O teatro estava lotado. Afinal de contas, não era todo dia que a cidade recebia artistas e os expectadores vieram de todos os cantos, fazendas e das cidades vizinhas. As cortinas vermelhas cerradas, o calor escaldante. As pessoas amontoadas, numa alegria de dar gosto. A trupe entrou em cena. Érica desempenhou seu papel sem a menor boa vontade ou profissionalismo. Justo ela, a melhor da companhia. Estava infeliz com aquele vestido. Havia percebido há tempos as puladas de cerca de Diego. Jurara pra si mesma que dessa vez não perdoaria. Sabia que o marido fazia isso apenas por tesão, sem paixão. Sabia que seu amor era ela. Mas isso não a consolava. Infeliz como estava, olhava para o novo vestido de noiva. Era como um mau presságio usar um vestido que não fosse o seu na peça de Nelson Rodrigues. Como um sacrilégio. O vestido emprestado de Tati era lindo, porém não lhe caía bem. As alças eram demasiadamente longas, e incomodavam quando caiam nos ombros. O vestido não lhe realçava os seios e, além disso, era o vestido da mulher com quem Diego havia se encontrado no dia anterior. Diego olhava-a com reprovação. Anderson cerrava os dentes, mordia os lábios. A peça estava uma merda. O público nada notou. Estavam extasiados. Aplaudiram muito no final. Voltaram ao palco por três vezes. Nem assim Érica sorriu. Apesar de tudo, saíram em grande estilo. O prefeito os esperava na saída do teatro, com a noiva a seu lado. Uma multidão os cercava. Sorrisos, abraços, despedidas. De súbito, ouviu-se um estampido. Susto. Fogos? Não. Atentado, tiro. Alguém tentou matar o prefeito, que teimoso feito uma mula, recusava-se a ter seguranças. Mas, cá para nós, quem precisa de segurança numa cidade do tamanho de um ovo como aquela? Se o mundo tivesse uma bunda, aquele lugar seria justamente o seu cu. Quando a confusão diminuiu, todos notaram, horrorizados, que alguém havia sido atingido. No chão, numa poça de sangue, jazia Hallana. De nada adiantaria médico, ambulância. Hallana estava morta, com um tiro na testa. Fabiano ficou em choque. Num relâmpago, percebeu que, mesmo sem dar atenção, amava aquela menina, tão meiga, tão alegre, que pacientemente esperava seus carinhos. Carinhos que eram divididos furtivamente com Michele. ***** Por conta dos últimos fatos, tão inusitados numa cidade em que quase nada acontecia, o domingo foi tumultuado. Alguém havia sido morto. Tinham sérias razões para desconfiar que era um atentado político. O coronel, pai do prefeito, tivera um infarto ao receber a notícia do tiroteio na pacata cidade, comandada há tantos anos por sua família com mãos de ferro. O casamento foi adiado indefinidamente e, ao invés de festa, os cidadãos foram prestar seu respeito à pobre moça que estava sendo velada no Hotel. Hallana ficaria eternamente naquela cidade, sepultada no pequeno cemitério atrás da igreja. A Cia. Palcomeu teve que permanecer na cidade por mais algum tempo, aguardando o esclarecimento do crime. Nervosos, infelizes, cansados, loucos para voltar para casa, sentiram um grande alívio quando foram convocados, dias depois, para uma reunião que teria lugar no mesmo teatro onde haviam se apresentado naquela noite terrível. O crime fora esclarecido, dissera o delegado, e ele queria que todos os envolvidos no episódio, direta ou indiretamente, soubessem o que tinha apurado. Todos ficaram aliviados, com exceção de Érica, que a cada dia que passava parecia mais nervosa. O delegado, fã dos livros de Agatha Christie, sentiu-se o próprio Poirot em frente à pequena platéia formada pelo prefeito, os assessores do prefeito, a noiva do prefeito e os artistas, e usou toda a sua imaginação. Caprichou na mis-en-scene: lentamente, descreveu com minúcias os detalhes da investigação, busca, captura e interrogatório do jagunço responsável pelo tiro. Descobrira, para espanto de todos, que o alvo do pistoleiro não era o prefeito, e sim Tatiana, sua encantadora noiva. Estarrecidos e boquiabertos, todos perguntaram em uníssono: - Quem poderia querer ver morta a linda e doce Tatiana? Quem? Coçando o bigode e levantando as sobrancelhas à moda Magnum, o Tom Selleck de Piracema do Tocantins fez suspense durante longos segundos antes de finalmente apontar o dedo acusador para Érica: - Foi ela! A trupe incrédula já ia partir em defesa de sua maior estrela, mas foram interrompidos pela própria Érica, que aos prantos confessou tudo. O ciúme que sempre disfarçara com seu extraordinário talento de atriz finalmente rompera a frágil superfície de sua calma aparência. Érica sucumbira. E a vítima teria que ser Tatiana, apenas a gota d'água, apenas a última em uma fila enorme de mulheres com quem Diego a tinha traído. ***** Dias depois, o comboio da Cia Palcomeu deixou a cidade. Saíam de Piracema duplamente desfalcados: haviam perdido Hallana e Érica. Em compensação, Tatiana, completamente apaixonada por Marcela, rompera seu compromisso com o prefeito e estava dentro de um dos carros, segurando com força a mão de sua amada. Fabiano, encontrando consolo nos ombros sempre disponíveis de Michele, pensava que voltaria à Piracema para visitar o túmulo de Hallana pelo menos uma vez por ano. E Diego, sério e arrependido, estava disposto a cumprir a promessa que fizera pouco antes através das grades do xadrez da delegacia: esperaria por Érica o tempo que fosse preciso. E sozinho. Os
três carros sumiram na estrada poeirenta em direção à
próxima cidade. O show tem que continuar, dissera Anderson. Mas uma coisa
era certa: nunca mais encenariam Vestido de Noiva. | |