CIÚME DE QUÊ, HEIN?
Virgínia Pinto e Nosé

Quando o assunto é o ciúme, fico deslocada. Acho que existem vários graus deste sentimento e desde que bem dosado, pode temperar bem a vida. Não consigo demonstrar ciúme. De nada, nem de ninguém. No fundo, procuro cultivar tamanho desprendimento do objeto ou da pessoa amada, para no caso de perda, diminuir meu sofrimento. Um ciumezinho de relance ainda vá lá, pra não parecer que é falta de amor às pessoas ou às coisas, mas aquela coisa do tal ciúme patológico, isso não faz parte da minha vida.

Desde pequena fui educada a cuidar das minhas coisas, e mais do que isso, minha mãe sempre dizia: - Estime suas coisas! - Eu odiava ouvir isso. Já viu que palavra mais sem nexo? ESTIME! Ora bolas, desde cedo estimei de tudo. Minhas bonecas, minhas roupas, meus amigos, meus pais, meu irmãos, meus avós, enfim, tudo o que me cercava. Até o dia em que comecei a perceber que se perdia o que se estimava e aí a coisa começou a mudar. Algumas vezes, gostava tanto daquilo que eu tinha, que um lado meu dizia: - Vai com calma. Não estime tanto. Não se apegue. Isso pode acabar. - E fui aprendendo a estimar, sem me apegar. Mais difícil ainda. Nossa, como a vida é complicada e tem certas coisas tão difíceis que demoram pra gente aprender!

Hoje à tarde tocou o telefone. Era uma antiga empregada.

- Tudo bem, doutora?

- Tudo. Quem está falando?

- É a Marinete, amiga da Marineusa. Nós trabalhamos juntas pra senhora.

- Ah, sim. Como vai? (lembrei da Marineusa, mas não dela).

- É que estou procurando emprego e lembrei da senhora. Sabe de alguém que precisa de uma passadeira? Trabalhei numa lavanderia e agora sei passar direitinho!

Pensei comigo, será que ela passava mal minhas roupas? Não consigo me lembrar... Preciso prestar mais atenção nisso, devo ter andando "mal passada" por aí...

Ela foi continuando.

- O irmão da senhora arrumou empregada? Faz mais de ano que fiz ficha pra trabalhar pra ele mas ainda não me chamou. A Ritinha que trabalhava pra ele morreu, lembra? Ela era minha vizinha.

Pensei. Como me lembro... Meu irmão e cunhada sentiram muito a morte da Ritinha. Acabou de sair da casa deles e caiu morta.

- Mortinha da Silva, como lembrou bem a Marinete, hoje.

Anotei o telefone dela e prometi que se soubesse de alguém a indicaria, sem falta.

Já ia desligando ela continuou.

- Eu sempre falo pra Marineusa. Casa boa de trabalhar era a da doutora!

Levei um susto e pensei mais uma vez:- Porque será que ela foi embora se minha casa era tão boa? Elas sempre fazem isso comigo. Jamais entenderei isso.

- A senhora lembra? A gente saiu da sua casa só por que não queríamos trabalhar de sábado. – Como lembro. Sábado é o único dia em que posso estar em casa e colocar minha vida doméstica em ordem. Mas já faz tempo que não tenho mais empregada de sábado. Se ela soubesse disso será que voltaria? 

- A gente só dá valor pras coisas depois que perde.- Continuou- A senhora era tão boa. Foi a última vez que tivemos carteira assinada. Lembra do edredon e do lençol que a senhora me deu?

- Ah Marinete, não lembro.

- Nossa, é tão lindo. Tenho até hoje. Já remendei um lugarzinho que rasgou, mas não sai da minha cama.

- Que bom, Marinete. Fico feliz por você guardar com tanto carinho algo que te dei.

-Tá bom, doutora. Que Deus ilumine a senhora. E se souber de alguém que precise de mim, avise. Ah, trabalhei no Natal e no Ano Novo. Preciso sair do aluguel. Se precisar de alguma coisa extra, conte comigo!

- Conto sim, isso sempre preciso, obrigada! Vou deixar seu telefone aqui na agenda. Até logo e fique com Deus!

- Até logo, doutora! Não esqueça de mim, viu?

Desliguei. Minha filha perguntou quem era. Respondi que não me lembrava direito e expliquei que era alguém do tempo da Marineusa. Ela contou, rindo, que se lembrava dessa época em que duas empregadas duraram duas semanas cada uma e outras duas duraram dois dias. Começamos a rir juntas, de nossa "desgraça", e disse que esta deveria ter durado duas semanas pois, sabia demais de mim.

Voltei a pensar no edredon e no lençol que ela citou. Quando entro em casa com algo novo, vou logo despachando o velho sem nenhum apego. Principalmente edredons que ocupam um espaço enorme em apartamentos tão pequenos. Mas ela ter guardado e falado com tanto carinho, me tocou.

Continuo estimando tudo o que tenho mas não me apegando. Vai-se aquilo que nos "aperta" e ficam o carinho e a lembrança, mesmo que vaga, daqueles que aos poucos, anônimos, escrevem nossa história.

- E aí? Alguém está precisando de uma passadeira? Ou de diarista?

Ela me confessou no final que pode ser pra qualquer coisa, pois precisa sair do aluguel...

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