ENGOMADINHO
Luciana Pareja Norbiato

Descolo delicadamente a aba de meu coração, colada com goma que passei como forma de tapar o buraquinho ali instalado, e assim me preservar e preservar meu par de tal instância comezinha. Carnuda, a aba se oferece em carne exposta, embora pareça um papel vermelho, onde leio letras que significam o que não quero, cravadas a formão, sangrando e doloridas. Vou roendo aquela aba mínima, não há o que fazer quanto a esta atitude, não há como negá-la ou fugir, ainda que a dor vá se tornando aos poucos insuportável. Sei da origem e responsabilidade quanto a esta dor, pois se eu deixasse de mordiscar e arranhar com as serrilhas de meus dentes a borda murcha e rubra de meu coração, a ferida cicatrizaria, deixaria de existir. No entanto, é uma ferida que prefiro tratar com goma, tapar impunemente a encará-la, doer constantemente a deixá-la ir, porque quaisquer das alternativas que não sejam imediatas e alienantes levarão a um caminho cujo final só pode ter uma linha de chegada: eu, em estado bruto. 

Ai, que me mastigo toda enquanto vejo passearem mais idéias do que fatos, mais fantasmas do que moças, mais mitos que o que sou. Ai, que minha angústia vai brincando aos poucos com os soluços em meus olhos, e teimo em deixá-la por dentro, sem escapar pelos cantos, como uma manta cobre o defunto. Ai, que me escapa da compreensão este sofrimento a que me obrigo, ao mesmo tempo em que sei melhor do que nunca o que me dói, e isso não vem de ti, não vem da tua importância para mim, mas vem do que não creio em mim. Ai, que monstros rondam a casa de minhas idéias, porque não sou tão bela, tão alta, tão roliça ou então esguia, porque não sou tudo aquilo que realmente não sou, mas que não posso aceitar não ser. E tudo o que sou me escapa por entre novelos de conceitos em mim atirados, e que pretendo aceitá-los todos; quem sou eu afinal?

Então, a dor se extingue. Como por encanto, presto atenção nos cantos do mundo e me espanto ao notar que não mordo mais meu coração, tornado desencapado.Vejo a máquina funcionando por dentro, engrenagens inexplicáveis que bombeiam muito mais que sangue, e sim volúpias, ímpetos, rompantes, silêncio, dor e morte, amor, amor, amor, amor e tantas outras inconstantes.

Cato novo músculo, preparo a goma, engomo, fechado afinal. Eis que estou novamente com meu coração engomadinho, até que me desperte a vontade de puxar-lhe a ponta.

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