PODISCRÊ
Luís Valise

 
 
Às sete da noite a bagunça atingia o auge, e o Polydoro se virava como podia para atender a demanda de pingas, cervejas, rabos-de-galo, ovos cozidos, salsichas no molho, manjubas fritas, e todo o arsenal que abastece os balcões desses bares de periferia, onde quem não é corinthiano ou é bom de briga ou não entra.

O chão do boteco não tinha cor. Manchas de café se misturavam aos goles dados “pro santo”. Os fregueses, muito sem cerimônia, cuspiam no chão com naturalidade, e rodelas de saliva ressequida faziam contraponto a placas de catarro amarelado, não raro com traços de hemoptise.

O carro de polícia chegou sem fazer alarde. Foi só encostar na porta, e quatro fregueses entraram juntos no banheirinho e dispensaram os berros. Outros esconderam as baganas dentro do sapato. Bacurau continuou sentado, olho no copo, sem ligar para os toques dados pelos amigos. Foda-se o berro, foda-se o fumo, foda-se a cana. Ele só fazia pensar na Ritinha, por isso bebia calado, ausente, marrudo. O policial saiu logo, Polydoro não cobrou o maço de cigarros, e aos poucos a algazarra voltou ao normal. Só então os amigos se deram conta do silêncio do Bacurau. Floreal perguntou primeiro:

“Quê que houve, Bacurau? Tu taí todo o tempo calado, tomando essas pingas na maior escama, qualé a bronca?” Zóio deu força:

“Diz aí, considerado, que amigo é pra essas horas. Podemos fazer alguma coisa?”

Bacurau não tirou os olhos do copo. Rodou a bebida, deu outro gole, raspou a garganta, soltou uma cuspida que acertou no pé da cadeira do Zóio. O cuspe escorreu lentamente, até parar na borda da havaiana do companheiro. A voz era quase inaudível: “Eu acho que a Rita tá me corneando”. A frase ficou flutuando sobre a mesa como cheiro de carne assada. O silêncio foi quebrado pelo Mandarino, ladrão velho, sabedor das coisas:

“Deixa disso, Bacurau. A Rita é ponta-firme. Na última vez que você foi em cana ela se virou de tudo que é jeito pra te livrar. Não saía da porta da cadeia, enchendo o saco do delegado, e só parou quando ele te soltou. Te levava rango, cigarro, mocozava o bagulho, nunca te deixou faltar baseado, como é que você dá uma dessa?” Bacurau não escondeu a tristeza, nem a raiva:

“Eu sei. Eu sinto. Tem malandro na parada. Ainda não sei quem é. Mas vou saber. Daí ela vai morrer primeiro, depois o come-quieto. Ou então ele me faz, mas tem que ser bom pra caralho pra isso!” Floreal tomou cuidado:

“Isso é coisa muito particular, acho que ninguém deve meter o beiço, honra de homem se lava com sangue. Mas tem um porém: tem que ter certeza. Eu posso até te ajudar, se for o caso. Mas não pode ter vacilo. Tem que ser pão-pão, queijo-queijo.” Zóio também foi solidário:

“Bacurau, tu sabe quantas paradas já enfrentamos juntos. Já batemos, já apanhamos, nunca corremos. Tamos aí pro que você precisar. Mas o Flor tá certo: tem que ter certeza. Às vezes o ciúme entorta os olhos, faz ver coisas que não existem. A Rita é gente boa, pensa bem, não vai fazer cagada.”

Com a cabeça entre as mãos, Bacurau agradecia as ofertas, mas era firme: “Isso é assunto meu. Eu criei a cobra, eu mato a cobra. Sozinho. A filha da puta anda saindo muito de casa. Eu manjo a rotina, são oito anos de amigação, agora deu pra sair, fazer isso, fazer aquilo, caprichando na roupa, cabelo penteado, sorriso, sempre um sorriso... Eu sinto aqui na testa, vê se não tá inchando, eu sinto o corno crescendo, aquela puta tá me corneando!”

Mandarino chamou o Polydoro: “Ô Poly, vê outra rodada, põe na minha conta”. Jogou o cigarro no chão, esmagou a bituca com o pé, cuspiu em cima, colocou a mão no ombro do amigo:

“Bacurau, eu sou mais velho que você. Já vi muita merda acontecer. O problema não é a merda, é o depois. Teve uma vez, tinha um tal de Passalaqua, ladrão mão-grande, do assalto, violento, puta gente fina, amigo de amigo, capaz de dar a camisa do corpo prum amigo. Esse cara tinha uma mina nas boca, não era nem amiga, era só de pissirico, mas ele era chegado na trepada da mina. Ela dava de graça pra ele. Até que um dia, uma piranha safada, sem-vergonha, invejosa, chegou pro Passalaqua e falou que a Dirce tava de caso com um investigador da 38. O ladrão ficou puto, o ciúme deixou ele burro, então ele apagou a mina com um teco no peito. Conclusão, adivinha quem prendeu ele? O próprio investigador, e quando ele disse o motivo do crime, o tira falou que era mentira aquilo, ele sempre pagava michê com a Dirce, ela nunca deu de graça pra ninguém. O Passalaqua nunca se recuperou. Outro amigo dele matou a marafona mentirosa, e depois ele acabou se enforcando na cadeia. Por isso eu te falo: toma cuidado, porque depois não tem conserto.

A bebida chegou. Cada um pegou seu copo. Zóio quis fazer um brinde: - Paz e amor! Bacurau fuzilou com o olhar, Zóio viu que foi mal, pediu desculpas: - “Gente, se ciúme fosse bom pobre não sentia”. Gostou da frase, jogou um pouco de pinga pro seu santo, matou o resto num gole só.

A mesa ficou sem assunto. Ninguém queria falar na desgraça do Bacurau. Quem falou foi ele mesmo: “Vou andando. Como amigo, peço segredo pra esse assunto. Peço também que se vocês souberem de alguma coisa me avisem. Não importa se a Rita é gente boa. Vacilou, tem que pagar”. Todos concordaram, um ainda disse “te cuida”. Bacurau levantou, firmou o berro na cinta, e foi pra casa. Logo os outros três também saíram. Na rua de terra, o escuro era quebrado pelo barulho dos grilos. Floreal descalçou um sapato, pegou um pacau, acendeu, puxou e segurou. Perguntou: “alguém vai nessa?” Mandarino deu um tapa, passou pro Zóio. Foi o Floreal quem falou: “A gente podia fazer alguma coisa pra ajudar o Bacurau...” A idéia surgiu debaixo dos cabelos brancos do Mandarino: “É fácil: vamos parar de comer a Ritinha”. Floreal concordou: “Só”. Zóio emendou: “Podiscrê”.

Deram mais uns puxos, até a bagana acabar, e então cada um foi pro seu lado.
 
 

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