NEGÓCIO
DA CHINA
Jorge Gomes da Silva
Sem proferir palavra, o detective privado pousou na secretária o resultado sórdido da sua investigação. Quedou-se por instantes, aguardando o melhor momento para apresentar a conta dos seus serviços que a própria ética do ofício condenava. O momento não chegaria, percebeu-o pela expressão angustiada do cliente que contemplava os envelopes castanhos sem coragem para os abrir. Decidiu então borrifar-se para o mal alheio e retirou do bolso interior do casaco um outro envelope, mais pequeno, no qual se encontrava apenas um pedaço de papel dobrado em dois.
Pigarreou, tentando chamar a atenção do fulano antes que um desmaio, um ataque de fúria ou um voo planado pela janela o impedissem de cobrar o total da soma que efectuara no papel. Já vira acontecer de tudo, no momento das penosas constatações que oferecia sob o pretexto de iminente divórcio a tipos como aquele. Provas, diziam, para minimizarem as perdas financeiras com o descrédito judicial das respectivas adúlteras. Seria verdade, para alguns. Não o era para a maioria, na qual se encaixava o homem que se escaqueirava por dentro diante de si. O pretexto que usavam apenas justificava uma acção cujo mote saltava à vista como a tinta fluorescente que destacava no relatório os aspectos que julgava essenciais. Para o tal divórcio, claro está...
O amante ensimesmado e arrogante que o contratara jazia agora na lembrança, tamanha a distorção que os nervos crispados lhe provocavam no rosto lívido de desgosto e de profunda desilusão. O detective manteve o silêncio enquanto o olhar alucinado do outro fingia percorrer as parcelas da soma que lhe competia pagar. Já não estava ali, a criatura que em piloto automático contou as notas até perfazer a quantia. O troco, como de costume, fazia de gorjeta. Um bónus, como alguns preferiam chamar aquele montante acrescido de recompensa, pela qualidade do serviço sujo que lhes prestava. Mais valia pagarem-lhe para os chicotear, tamanha a tristeza que invadia o semblante da clientela no acto de entrega da mercadoria solicitada. Encomendavam sarilhos e ele fornecia, sempre com a máxima discrição, a mais invocada das exigências numa actividade clandestina. Chamavam-lhe o elemento surpresa, como se a estupefacção da surpreendida trouxesse ao cornudo alguma vantagem ou simples consolo no meio de um cenário assim.
Muitas vezes adivinhava nos gestos, nas palavras e nas expressões dos seus clientes a sequência lógica da sua revelação. Uns optavam de caras pela violência, pancada até desfalecer no corpo infiel da traidora. Outros, nem sempre melhores de assoar do que os brutos primários, maquinavam na hora os esquemas mais tortuosos de utilização do produto final. Desgraçavam a vida às respectivas sem lhes tocarem num cabelo, esgrimindo gravações, fotografias e outros elementos de prova em muitos pontos estratégicos para além do inevitável tribunal. E depois havia-os assim, calados, em choque e sem capacidade de reacção.
Esses eram mais difíceis de prever nas reacções que se seguiam. O desse dia definhava sem um pio, olhos postos nos factos da sua constatação. No caso concreto, era a amante que o traía com um amigo especial e não a mulher que dormia sozinha numa cama para dois onde ele pouco se estendia. Era um pedaço de mulher, a rapariga, hábitos de pessoa culta e bem formada, um corpo escultural. Bastariam dois meses para obter o material necessário, ela pouco escondia e na verdade nada teria a esconder. Excepto dele, o macho possuidor de uma relíquia que nunca admitiria partilhar com outro da espécie, vergonha, apesar de a sua própria condição o inibir de tais veleidades ou intromissões. Mas o homem, abastado cinquentão, julgava-a sua e investiu naquilo que considerava legítima defesa patrimonial. Não havia outra forma de entender o problema, houvesse uma alma com a paciência necessária para o explicar ao palerma que sofria por causa da sua lamentável estupidez.
Quando fechou a porta do gabinete e se despediu da recepccionista que consigo colaborara em alguns aspectos da investigação, embrenhou-se num raciocínio que o divertiu pela conclusão. A alma do negócio não era o segredo, que no caso sempre existia, mas sim o ciúme que corroía a perspectiva aos mais fracos de entre os fuinhas capazes de pagarem por um serviço assim. Flagelavam-se com imagem inventadas enquanto aguardavam confirmação da suspeita e quando assistiam em privado às desonras, como as sentiam, não conseguiam lidar com a pressão. Ensandeciam.
Não estranhou por isso o aglomerado de gente chocada diante da porta principal, a agitação provocada pela explosão em pedacinhos de um corpo estatelado no pavimento, vindo do piso mais alto do edifício de escritórios onde obtivera maior número de recomendações.
Mirou de soslaio o que restava do infeliz enquanto anotava na agenda uma eliminação de ficheiro a efectuar e o quilo de cebolas que a mulher lhe pedira para comprar no caminho de regresso. Confirmou que ainda lhe sobrava rolo na máquina fotográfica para uns flagrantes de outras vidas em tormento. Depois, sacudiu a gabardina e infiltrou-se na multidão.
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