NEM FREUD EXPLICA
Heringer

Ele aprovou o aspecto da ante-sala do médico. Era austero e limpo, e, como enfeite, havia somente um bronze lustroso com o busto do maior psicanalista de todos os tempos. Sentou-se e esperou por alguns minutos; e logo a porta do gabinete se abriu e um senhor bem vestido fez sinal para que entrasse. Lá dentro a atmosfera não era outra. Tudo era ainda muito sério e bem cuidado. Sentaram-se, ambos, um de frente pro outro. Foi o médico quem primeiro falou:

- Em que posso ajudá-lo?

- Minha mulher sugeriu que eu viesse.

- O senhor não queria ter vindo?

- Não acho que é caso de me ... – vacilou;

- Caso de quê?

- De me tratar.

- O que o senhor tem? Qual o problema?

- Tenho uma mulher muito bonita... e não gosto que outros olhem pra ela.

- E onde está ela agora?

- Em casa... trancada;

- Como trancada?

- Trancada, mesmo, no quarto. Só vou permitir que saia quando eu chegar e abrir o quarto. Olha a chave, e mostrou ao médico uma chave atada ao cordão que lhe circundava o pescoço carnudo. 

- Faz isso sempre?

- Faço... mas, só quando eu saio de casa. Quando estou lá, ela pode andar pela casa, ir a qualquer quarto ou aposento, ver tv, se divertir.

- Há quanto tempo estão nessa... (ia dizer uma coisa, mas acabou mudando de idéia) ahn, casados?

- Há dois anos... e eu gosto muito dela, viu doutor?. Faço isso porque gosto muito dela, compreende? Se eu não gostasse não faria o que faço. Ela reclama porque não entende os meus sentimentos. Eu tenho ciúmes, já sei que é o que vai concluir, eu admito. Mas o ciúme é um cuidado especial, é um zelo que tenho por ela. Não gosto que outros homens fiquem olhando para a minha mulher. Ela é muito bonita...acho que já disse isso, não disse? Pois bem, ela é linda, sim. E os homens olham pra ela como se a quisessem comer com os olhos. Eu fico tão furioso que sou capaz de matar um qualquer dia destes. E pra evitar isso é que...

- O senhor a trancafia?

- Tranca-o-quê?

- Prende; o senhor a tranca no quarto; não foi isso o que disse? 

- Sim, foi, eu prendo ela no quarto.

- E no quarto não há janelas?

- Sim, tem uma, mas fica no décimo andar. Não dá pra fugir, se é o que pensava.

- O senhor não costuma sair com ela? Fazer passeios... alguns programas?

- Vez ou outra... há uma mês eu a levei na casa da minha mãe, que mora noutra cidade, mas que não é muito longe.

- E os pais dela? Ela ainda tem os pais ou parentes?

- Tem, claro. Mas moram no Pará, quase no meio da selva. É muito longe! Depois que nos casamos nunca mais ela voltou lá. Eu tinha ido ao Pará trabalhando com uma empresa de construção civil. Fomos fazer uma barragem. Conheci a Ana Maria, me apaixonei por ela e a trouxe comigo. É meio índia, meio cafuza, mas é muito linda...

- E ao cinema, vocês não vão ao cinema, aos shoppings, em parques?

- Muito pouco, doutor, como eu já lhe disse, nesses lugares há sempre muitos homens, e que quando olham pra ela, parecem leões querendo atacar uma presa. Nessas horas eu fico fora de mim! 

- Vocês têm filhos?

- Não, doutor, ainda não. Ela anda fazendo umas coisas feias e terríveis comigo... diz que se eu não mudar, não deixar de ser como sou, não vai me dar filhos. Acho que talvez o senhor possa me ajudar, doutor. Eu quero muito...

- Ter filhos?

- Até pode ser, mas eu quero muito mesmo é deitar com ela, doutor, e ela anda me evitando, não consente. 

- O seu tempo acabou.

O angustiado homem, no calor da conversa, que assim terminava abruptamente, ficou olhando pro médico, sem entender direito o que se sucedia. Calmo e ponderado, o Dr. Márcio lhe avisou, que continuariam aquele assunto, numa próxima seção. Esse fora o último cliente do dia, e ele agora tinha pressa. 

Em uma hora o Dr. Márcio já estava em seu belo e confortável apartamento, onde esperava e desejava os carinhos de Helena, a moça com quem estava morando há cerca de oito meses. Após um casamento fracassado, que havia durado seis anos, e de grande desgaste para ele, tentava assim refazer a vida com esta jovem, quinze anos mais nova que ele próprio. Beijou-a, mas não pode dissimular o espanto por vê-la em trajes, que revelavam a sua inequívoca decisão de não permanecer em casa naquela noite. No entanto, ela não o havia avisado de qualquer programa especial, nem ao menos havia ligado para ele uma vez sequer durante todo o dia. Perguntou-lhe o que pretendia fazer, onde iria, e ouviu dos carnudos e belos lábios da moça, sensualmente pintados de carmesim, que um velho amigo estava na cidade e a convidara para um drink. Esperava que ele não se opusesse e nem ficasse aborrecido com o fato de não o haver convidado – o amigo era um estranho pra ele! -, uma vez que a relação dos dois se baseava no pleno respeito às decisões pessoais. Ele dissimulou a contrariedade e disse que estava tudo bem. Helena apanhou a pequena e elegante bolsa que pousara sobre a mesa e em longos e ligeiros passos ganhou a saída. Assim que o elevador se fechou, Márcio chamou pelo outro e desceu logo em seguida. À rua, ainda viu quando um reluzente BMW parou próximo à calçada, e também quando a porta se abriu para que Helena entrasse. Sua voz estava impregnada de raiva e ansiedade, quando ordenou secamente ao motorista do táxi para que seguisse “...aquele veículo”.

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