BOLINHAS DE ALGODÃO
Beto Muniz

 
 

Pra iniciar bem essa conversa é preciso esclarecer que eu não tive participação na - Deus a tenha - morte da Eufrozina. E se venho a público revelar a verdade é por conta que andam dizendo coisas por aí que um homem de bem não pode admitir que sejam ditas. Só por ouvir contar a gente não pode repassar um caso como se fosse fato, e pra desfazer mal-entendidos nada melhor que a verdade acontecida, que é bem diferente das verdades que já correm por aí à boca miúda.

Quando a Frô era mocinha e tomava corpo de mulher, era um tal de marmanjo aparecer no portão do meu sogro com umas conversas mole de Eufrozina pra cá, Eufrozina pra lá, que se não tomo tento e peço logo a mão da moça em casamento perigava eu perder tanto as mãos quanto o resto dela pra algum abestalhado de bico doce. Teve amor envolvido na aceitação de noivado, mas teve sorte de minha parte também. Aqueles gaviões todos estavam só tramando passar a lábia na Frô e compromisso mesmo só eu ofereci. Era isso, ou ficar esperando ser dispensado assim que outro propusesse casamento.

Tão logo oficializamos o noivado já marquei data pro casório, e em pouco tempo estava atrelado de corpo e alma na moça mais prendada da vila. E quando falo das prendas da Eufrozina, é importante salientar a beleza, que essa é a mais valiosa das riquezas visíveis. A moça pode lavar, passar, cozinhar, ser boa parideira e ainda trazer um naco de terra pro sujeito acrescer às suas posses, mas se faltar beleza é bem capaz do noivo esconder um desconsolo lá no fundo do peito. Não que isso seja motivo pra desistir de casamento, mas que dá uns aperreios dá. Acontece que Eufrozina nascera pra ser encarnação da perfeição e se tinha um defeito ou outro era coisa pequena, dava pra relevar.

Porém, pra desgostar esse que vos escreve, a moça tinha um coração de ouro e não sabia negar prosa pra ninguém. Pra segurar ela num converse, nem precisava ter assunto bom. Podia ser que o sujeito estando de conversa fiada ela desconfiasse, mas a Frô nunca que ia pedir licença-que-tenho-panela-no-fogo, se isso não fosse verdade. Conforme a situação, ela deixava até queimar o arroz só pra não magoar, dispensando, quem lhe dirigia a palavra. Esses modos dela foram me remoendo por dentro e eu nunca que arrumava jeito de dizer pra ela cessar as atenções para com os vivaldinos. A maioria era de amigos de infância, que desde sempre tinham por mania conversar no portão. Só que bem no cantinho do coração foi crescendo um entulho de coisas ruins. Coisas que eu pensava quando pegava ela dando trela pra alguém. Sei que minha Frô não fazia por maldade, coitada, mas na hora da raiva o sentimento ruim num deixava eu pensar direito. A coisa só ia se ajuntando no coração, arrochando aqui dentro e fazendo sombra ao amor que eu tinha por Eufrozina.

Eu admito que pensava essas coisas porque era um tanto quanto desprovido de conhecimentos. Se fosse com os entendimentos de hoje eu teria facilmente dispensado o entulho do peito, mas naqueles tempos, o tempo de pensar era o mesmo tempo gasto no cabo da enxada, em cuidar das posses, não deixar carrapicho e picão tomar conta da lavoura.Ô tristeza essa vida! Depois de certa idade a gente já sabe, por intuição, quando os sentimentos são maus. A gente é tão infeliz, que não nasce sabendo que na hora das tarefas desagradáveis, apesar de necessárias, não é hora de ficar arquitetando destino pra esse tipo de entulho. Periga a enxada arrancar fora um tampo da botina com pé e tudo junto. Periga também ter idéia errada, mas que na hora parece idéia certa. O caso é que a idéia veio quando o ciúme estava tão entulhado que nem cabia mais no peito. Nasceu debaixo do sol e tomou forma numa noite de lua nova.

A Frô, saliente que só moçoila recém casada, vestiu um pijaminha que dançava solto sobre seu corpo de moleca virando mulher. Só de bater os olhos em cima dela, já fiquei babando feito ruminante com sonambulismo. Apaguei o lampião e deixei apenas a lamparina de canto acesa, pois ver a boniteza da mulher também faz parte do casamento. Não conto o que aconteceu em seguida por causque, sobre essas coisas, a gente sendo marido deve manter silêncio mesmo depois que vira viúvo. Só posso dizer que dessa noite em diante sempre que ela queria dengo botava o pijaminha. E digo também que, conforme fui adormecendo, a idéia ficou martelando lá nos pensamentos, se ainda tinha malandro rondando era por conta que minha mulher estava cada dia mais bonita e para afastar esses desenxabidos eu teria que enfeiar minha Frô. Dormi, mas a idéia ficou acordada.

Não sei por quando tempo fiquei dando tratos a essa idéia maluca, e não lembro se foi de obra pensada que botei bucho na Frô. Sei que pouco tempo depois ela emprenhou e de propósito eu ia à vila e comprava caixas e mais caixas de bombons. Bolos, quindins, chocolates, sorvetes e tudo quanto era tipo de guloseimas e compotas a Frô comeu enquanto estava de barriga. E barriga era o que ela mais tinha. Doutor Jacinto pediu pra ela tomar cuidado com o aumento de peso, ela tentou obedecer e eu nem tchuns! Entuchava coisas gostosas na goela da Eufrozina dizendo que o tamanho da barriga era que indicava cria com saúde. E dá-lhe volume! O filho nasceu forte, parrudo! Foi tanta felicidade que até esqueci o entulho guardado no coração. Depois o menino foi crescendo e as idéias de enfeiar Eufrozina voltaram junto com o primeiro sujeito que bateu palmas no portão. Disse que queria vender uns trecos lá, mas eu não me deixei convencer com essa história. Bastou pouco pra família deixar de ser três pra ser quatro, e depois cinco. No quarto filho o doutor quis aproveitar e fazer uma laqueadura, eu não sabia se queria, mas a Frô já estava aberta na mesa, e pediu tanto, que resolvi conceder esse agrado. Foi por isso que a família parou de crescer.

Quando o menorzinho dos nossos filhos alcançou a idade de seis anos, a Frô estava redonda, lustrosa, sorridente. Uma beleza diferente. Daquelas que ninguém dá valor a menos que esteja posta em criança. Criança gorda é que é bonito! No portão ninguém mais a chamava pra jogar conversa fora. Gavião nem rondava meu terreiro. Pois foi assim, seu moço, que eu descobri que tinha muito apreço pela Frô, mas sentia mesmo era falta de ter a mulher mais desejada da vila. Num era tendência pra corno não! Era só uma saudade da satisfação por ter levado a melhor na disputa pelo coração de Eufrozina. Não ter ninguém no portão me lembrando essa vitória foi me desacoçoando os bons sentimentos, me desgastando o querer, e pra dizer a verdade, eu nem olhava mais pra ela deitada ao meu lado na cama. Ela se enfiava no pijaminha, que então já era um pijamão, apagava o lampião e nada. Num era de propósito, era uma desvontade maior que eu! E por conta dessa desvontade eu virava a cara pra parede e puxava um ronco falso como se estivesse com o sono solto. Depois de uns anos nessa vida sem graça, decidi que era tempo de dispensar a mão da Frô. Veja bem: num ia deixar minha mulher porque ela estava sem atrativos, isso nunca foi razão pra desmantelar a família, a razão mesmo era que eu não tinha mais amor pela Eufrozina! Deus sabe que relutei antes de tomar decisão definitiva. Pensei nos meninos, mas eles já estavam criados, e só então percebi que não tinha motivos pra ficar. Tomei meu rumo.

Eufrozina agüentou o tranco. Tanto que ficou na soleira vendo eu fechar o portão. Só bem depois que eu sumi na estrada foi que ela entrou em casa, ferveu água, passou um café, misturou com um negócio que até hoje o doutor não soube dizer ao certo o que era, acendeu o lampião e esperou a morte chegar. Nosso filho do meio encontrou a mãe estirada. Vestia o pijaminha que já estava mais do que esticado, desbotado e cheio de bolinhas de algodão engrunvinhado. Uma coisa feia de se ver, dizem por aí. Mas esse tipo de comentário, ainda mais sendo a respeito de pessoa já finada, só desabona esse povo que anda espalhando aos quatro ventos que eu tenho culpa na morte da Eufrozina. Tenho não!

 
 

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