ERVILHAS DE MENDEL
Adlai Hoartmann
Quase acendeu os cigarros no desespero de uma madrugada ínsone, quase, mas deixou o cigarro preso na secura dos lábios, lembrou-se que havia um bebê no quarto, assustou-se ao pensar o óbvio, que o bebê era seu filho, e o coração derrapou pelas costelas do lado de dentro do peito vindo parar do lado direito, desacelerado, apertadinho e dizendo coisas sem sentido.
coçou o nariz.
a mulher dormia na cama totalmente desligada, sem catarse, diazepan, fadinha dos sonhos. levantou-se da cama em direção ao bebê. pensou que tinha várias coisas para dizer ao filho, mas não sabia o que era importante e o que não era. ficou enseado na borda da caminha. menino. como ele. olhando.
tragou o cigarro não aceso, deveria parar de fumar para não dar mal exemplo. fumou aos 15 para fazer cara de mal, agora o fôlego é que andava mal, pensou que "isso faz um mal danado". coçou o nariz. tentou tocá-lo mas teve medo de acordá-lo e acabar com a noite do vizinho. aos 17 tomou o maior porre em família de toda a sua vida, chegou em casa às 4 da manhã e acordou todo mundo gritando e pedindo desculpas, vomitava e então dizia que nunca mais iria beber. pensou, putz, segurou o soluço entre os dentes e o mordeu, sentiu o gostinho azedo do vinho que bebera antes de dormir, essas merdas, pensou e prometeu que não iria beber nunca na frente dele, para não dar exemplo ruim.
o menino tinha o nariz do pai, lhe disseram. ficou orgulhoso do próprio nariz. mas quis que parecesse a mãe, que era bonita, ele não, que era feio e desajeitado com mulheres e que o moleque não lhe puxasse o tino para a má-sorte, o descuido nos esportes com o pé, a sutil irresponsabilidade com as contas, o relaxo com a própria imagem. coçou a barba. nunca foi muito bom em conselhos. nunca foi bom em abraços. pensou que talvez seria um péssimo pai. pensou que seria um péssimo pai. pensou que seria péssimo. olhou o "ao redor" do quarto, cheirinho de loção hidratante, coisas de bêbe e pensou, o moleque pelo menos vai ser cheiroso.
foi até a cozinha preparar bacon com ovos para comer, o dia amanhecia nervoso, tinha emprego pra procurar e visitas circunstanciais pra fazer, alguns sacos para puxar, desligado, pensou que talvez não pudesse ter certas certezas e que o destino, bem, que o destino era foda às vezes, sentou-se a mesa de quatro lugares, engolindo vários "ses".
e então o bêbe chorou pela primeira vez naquela madrugada, hesitou em ir vê-lo, esperou, o chorinho dele era agudo e forte, até que se acalmou, imaginou que a mãe o havia pego do berço, pensou, ele confia na mãe. e sentiu uma pontinha de ciúmes da vida que "o pequeno filha da puta" teria pela frente, engoliu o café apressado, não se despediram, temos o mesmo nome, sorriu ao pisar na soleira da porta, temos o mesmo nome, repetiu para si mesmo e teve a primeira certeza do dia.
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