DESPERTAR
Rodrigo Stulzer Lopes
continuação de "Máscara de luz"
Havia se adaptado à mascara. Fez mais um corte na área da boca e outros dois pequenos nos ouvidos. Ao colocar a máscara de carne sentia que enxergava melhor e seu campo de visão aumentava. Como fizera as costuras do lado de dentro, poderia passar quase imperceptível nas ruas, ainda mais vestindo um boné. Parecia uma daquelas pessoas com seqüelas que vivem mendigando em toda grande cidade; aquelas em que ninguém olha além de alguns segundos, com medo de ser contaminado.
Desde sua infância sentia uma pequena euforia quando andava no centro da cidade, perto da praça da Igreja Matriz. Sabia que na esquina depois da banca de doces havia aquele velhinho com a perna exposta, escorrendo um líquido branco, semelhante a um pus. Imaginava que aquele senhor, tão maltratado pelo tempo, acabara descobrindo um jeito de ganhar a vida através de sua perna doente. Pior ainda era o E.T., outro moribundo que por algum abuso da adolescência havia perdido o nariz. No lugar restara somente uma cartilagem branca.
Com a máscara de carne seu rosto parecia que havia sofrido diversos cortes profundos com enormes cicatrizes. Acabou sentindo-se como um dos velhos moribundos de sua infância. Estava praticamente invisível e imperceptível pois todos fazem o máximo possível para apagar lembranças ruins da cabeça. Desta maneira poderia seguir os desígnios Dele sem ser incomodado.
Sentia-se triste de noite. Estava atrás de uma luz que não encontrava. Olhou-se uma última vez no espelho antes de colocar a máscara de carne. A ausência de pêlos em sua cabeça e rosto deixavam-no com um ar indefeso, quase caricato. Vestiu a máscara feita de pálpebras; era incrível como ela se adaptava bem
à sua cabeça. Era como se fosse a sua própria pele; podia sentir através dela. Colocou o boné e a jaqueta preta que tanto gostava e saiu.
A noite assustava e trazia euforia; cada esquina, uma história; cada beco uma aventura. Lembrou-se de quando era pequeno e voltava da missa com seu pai. Ele sempre lhe contava alguma história interessante e com toques de suspense. Uma vez era o louco da cabeça furada, outra era a velha que roubava crianças que não se comportavam. Ao passar por outras pessoas na rua agarrava-se no pai, sentindo-se protegido.
Já fazia anos em que andava sozinho pela noite. Seu pai não entenderia a sua missão, pois achava que falar com Deus era ir à missa e rezar. Ele descobrira que Deus também se comunicava de outras maneiras bem menos sutis e até mais explícitas.
A primeira vez que Deus resolveu lhe passar um sinal foi quando tinha 12 anos. Pensamentos
obscenos começaram a povoar-lhe a cabeça. Todas as meninas pareciam ter crescido; eram lindas mas o ignoravam. Riam dele e de suas roupas e sapatos largos. Ele ficava muito envergonhado de ter que usar as roupas de seu irmão mais velho. Naquela época a família inteira estava desempregada e pedir uma roupa nova seria motivo para levar uma surra. Quando estava na escola achava que seria melhor apanhar do que servir de motivo para chacota das meninas.
O sinal veio sob a forma de uma linda menina de olhos grandes e verdes. Chamava-se Patrícia, mas acabou sofrendo um acidente quando estavam conversando. Ela teimou em dizer que Deus não existia, que ouvira isso em um filme; que era tudo bobagem, invenção das pessoas. Algo tomou conta de suas mãos e ele agarrou-a pelo pescoço, apertando-o. Sentia um luz interior iluminando-o; ela precisava ser eliminada. Estava chegando no auge; o último sopro de vida de menina estava por esvair-se. O êxtase era incrível, sentia toda a força Dele em suas mãos. Ele estava guiando seus movimentos para fazer a justiça, livrar uma alma negra do mundo.
A servente estava saindo de uma das salas que acabara de limpar e via a figura dantesca do menino com as mãos no pescoço da menina pálida. Correu em sua direção e instintivamente bateu com a vassoura nas costas do garoto com toda a sua força. Ele caiu de joelhos e só soltou as mãos depois que ela bateu-lhe na cabeça. Ele parecia possuído, seus olhos estavam vidrados e só despertaram depois das investidas da vassoura. A menina saiu correndo e ele ficou agonizando no chão. Parecia ter entrado em convulsão.
Descargas elétricas percorriam todo o seu corpo. Ele não conseguia controlá-lo. Mesmo assim o prazer era enorme. Nunca havia sentido tamanha energia. Havia visto Deus pela primeira vez e sabia que era isso que queria para a sua vida. Seria seu discípulo. Faria tudo para seguir seus desejos.
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