CAPÍTULO
1
Reinaldo de Morais Filho
Era a Segunda vez que segurava um corpo morto. A primeira acontecera há seis anos, quando o carro de um amigo chocou-se em um poste diante dos meus olhos
— eu o acompanhava em outro veículo, poucos metros atrás.
Um acidente de trânsito, uma amizade superficial. Marcou-me pelo susto, pela proximidade com que pude saborear a morte. Desta vez os sentimentos eram mais complexos, pois, além da amizade íntima, nutria por aquela garota uma paixão que crescia despudoradamente.
E desta vez, ainda que não tenha presenciado a tragédia, esta continha requintes dramáticos agravantes: era uma jovem, dezessete anos, que não suportou as crises da adolescência, tampouco as promessas do mundo adulto; e ainda, não acreditou no que eu podia oferecer, e se atirou da janela do seu quarto, quatro andares de queda livre.
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Os primeiros exames denunciaram que se jogara de costas, talvez sem coragem de olhar para baixo.
A altura não foi suficiente para desfigurar suas formas, não havia fraturas expostas, ossos sobrando ou faltando, como eu imaginava encontrar quando soube da tragédia.
Em alguns pontos, entretanto, como na parte posterior do seu crânio, minha mão pouco sofria resistência, tornaram-se partes moles. Um molusco: foi a isso que ela regrediu, desde o instante que decidiu correr em direção à janela.
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Externamente eu era a pessoa mais controlada presente, segurando o corpo de L.; um choro compungido, um olhar desolador, impávido. Mas por dentro, em um último instante de consciência pude perceber o surto de loucura galopando em minha direção.
Pensamentos inadequados ocupavam minha mente. Calculava a velocidade da queda, o tempo, a distância; lembrei das fórmulas, da Física, eu que detesto ciência, coisas exatas.
A pele alva e o sangue quase negro pintavam um quadro barroco, cheio de detalhes, antíteses; o vestido acima da cintura revelava a ingênua calcinha rosa, sua cor favorita, a cor dos lábios. Não, agora seus lábios estavam esbranquiçados, mórbidos.
Minhas alucinações recobraram sua matiz, e outra vez estavam róseos, como os percebi róseos pela primeira vez, em uma noite fria, na praia de Copacabana. Desenhei sobre a tragédia aquele quadro perfeito, os lábios, a blusa clara e delicada, os braços fortes segurando suavemente um coco, a boca seca.
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Digressões. Procurava entender porque sua boca permanecia sempre seca, enquanto eu a inundava com minha saliva; ela me sugava, a saliva, o beijos, os lábios, minha consciência, enfim.
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Desejei aquele corpo, ainda o imaginava com vida, sobre o meu, nu, repleto de manchas vermelhas sobre os seios, as manchas vermelhas que surgem nas mulheres quando em êxtase.
Perdia-me em uma inconsciência absurda, na promiscuidade dos meus desejos, na loucura para onde me varreu minha angústia.
Despertei quando já avançava os dedos suavemente sobre seu umbigo. Toquei em um piercing, e logo em seguida, na sua pele gélida; escancarei os olhos, arrepiado: estava mais fria que de costume.
Já estava acostumado com sua temperatura. Mesmo sob o sol carioca, sem brisa, sua cútis permanecia límpida; o suor que às vezes podia-se enxergar borrando a face, era do meu toque, do meu corpo. Eu ardia ao seu lado, sentindo o choque térmico no abraço, despejando meus sentimentos.
Amplexo mudo. Envolvia-me em seus braços silenciosamente, como se estivesse, como eu agora, segurando um cadáver; seu corpo, seu abraço, seu peito, gélidos. Não entendia como alguém tão fria podia despertar minha atenção, atrair-me e deixar-me seguro para, sóbrio, declamar poesias.
Talvez porque, colada em meu tórax, recostava a cabeça, suavemente, em meu ombro..
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