FANTASIA
Nato Borges

Tinha para si que era um anjo, que por vezes se perdia pela Terra, pelas águas, pelos ventos de cantos que só via quando do céu olhava para baixo. Alguns dias tinha preguiça, e deixava as pessoas por conta de sua sorte, dos cuidados do acaso. Outros acordava acometido de crises de responsabilidade, e dali tirava forças para salvar em dobro.

Pelo céu via o mundo. Montanhas, rios, lagos e gentes, muitas, todo o tempo. Elas não o viam, mas mesmo assim sorria e acenava do alto de uma alegria boba, feliz de sua condição de ser alado e santo. Muito de sua felicidade vinha da santidade, do poder e da aura divina que emanavam de sua respiração, de seu suor, era bom ser anjo.

Mais que anjo, achava bom ser bom. Aquilo lhe dava uma superioridade sem pompa, sem orgulho. Sabia que era bom e ficava feliz em perdoar, em abrir seu coração aos que precisavam de verdade. Quantas vezes fez sorrir quem já não tinha esperanças, quantas vezes levantou quem acreditava não haver mais caminhos ou saídas e inerte se deixava esperar por qualquer coisa.

Às vezes queria só se deixar ser visto e compartilhar sua felicidade. Nestes momentos era admirado. Sentia no olhar das pessoas um certo orgulho por conhecê-lo, só por poder conviver com ele. Os mais humildes pediam para tocar sua roupa. Deixava não por pretensão, mas para ver o brilho nos olhos e a alegria nos passos saltitantes que corriam para casa, ou escola, ou bar para espalhar a novidade, a boa nova.

Outras, queria apreciar de longe seu trabalho. Voava, voava alto e de lá seguia os que conhecia, os que tinham passado por sua vida em algum momento. De lá inflava o peito de orgulho e, com asas esticadas, planava em piruetas mirabolantes. Descrevia no céu, mesmo invisíveis à Terra, sinais de agradecimento a oportunidade que tinha recebido da vida, do destino. Era um anjo.

Pelos sentimentos guardava respeito. Sempre que sentia sinceras a tristeza e a desesperança, se abria em um sorriso sem fim, largo como deviam ser todos os caminhos, seguro como deviam ser todos os lares. Não importava os motivos, por banais que fossem. Não julgava. Não era esse seu trabalho, mas sim ajudar quem de fato precisasse, e para isso bastava acreditar na necessidade. A crença tornava reais todos os problemas, pensava, e tratava de solucioná-los só pela satisfação de ver uma alma desanuviar-se.

Sim, também via almas. Lá do alto não via as pessoas com pés e cabeças, mas suas almas, cheias de cores e texturas. As mais bonitas eram as de cores vivas e quase etéreas. Indicavam uma felicidade quase infinita e era delas que se alimentava. Outras o sugavam, como as escuras e pesadas como fumaça ou lama. Desta fazia sua obrigação, mas eram as primeiras que gostava de ver do alto, como se fossem quadros vivos.

De fato eram. Seus movimentos faziam da Terra um quadro. Efeitos de luz e cores ciscavam de um lado para outro e o enchiam de orgulho, não de pai, mas de um tio ou irmão mais velho responsável por cuidados, por ver de longe a evolução e amparar quando preciso. Muitas vezes era preciso, mas não ligava, estava lá para isso, sempre, sempre.

Tanto se distraía com sua obra, que por vezes tanta alegria o fazia perder a concentração e com ela a concentração na harmonia do movimento das asas. Era como um escorregão, que o jogava para baixo em uma queda livre sem fim.

- Acorda seu bostinha! Vagabundo sem préstimo, levanta! Tá aí rindo enquanto dorme e seus irmão já tudo na rua pedindo. Se mexe, que só come quem traz algum...

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