ALFAZEMA, E TERNAMENTE
Míriam Salles

Toda manhã ela virava a esquina observando os arbustos floridos.

Entrava na casa levantando a tramela do portão sem fazer ruído que era para eu não acordar. Acho que ela nunca soube que eu sempre estive acordada, que ficava esperando ouvir os ruídos típicos da sua chegada para me preparar para o dia que começava. Ouvia-a se dirigir ao quartinho dos fundos e ficava a imaginar seus gestos enrolando os longos cabelos grisalhos no alto da cabeça. Era vaidosa, mantinha os cabelos presos durante o trabalho e os soltava ao ir embora. Eram tão longos que ela quase podia sentar-se sobre eles. Era meticulosa na limpeza e criativa na cozinha. Conhecia todas as ervas e matos. Um dia meu filho caiu e se machucou. Foi ela que saiu pela rua afora colhendo raízes. Trouxe um vidro de álcool e me ensinou a fazer a poção. Poção, sim, pois Olívia era uma bruxa, a única legítima que conheci. Quando os meninos cresceram um pouco, ensinou-os a reconhecer essa raiz com cheiro de menta e a fazer a poção para contusões. Adorava meus filhos à distância. Cuidava deles mas dificilmente os tocava. Preocupava-se com a barriga enorme que eu apertava ao carregar pedras para fazer nosso jardim de ervas. Ajudou-me a fazer canteiros cheirosos, com ervas desconhecidas e nomes mais estranhos ainda. Trouxe uma muda de novalgina e ensinou-me a usá-la para tirar a dor e a febre. Trouxe muda de hortelã grande e ensinou-me a temperar peixe. Foi com ela que vi pela primeira vez orégano verde e vivo e que aprendi a usar para fazer pirão.

Foi com ela também que deixei o cachorro que apareceu do nada e nos seguia sempre, como uma sombra. Andava ao nosso lado até a praia e deitava-se ao lado da esteira. Se qualquer um de nós fosse muito fundo, levantava-se e latia. Ele bem sabia o quanto aquele mar era perigoso. Nós é que nunca soubemos porque fomos escolhidos. A noite ele se despedia com o olhar e ia embora. De manhã cedinho estava a postos a nos esperar. Após uma semana, Sombra teve parvovirose. Tratei dele da mesma forma que da minha cadela, a Mary, com injeções de Plasil e soro. No último dia (a crise da parvovirose dura três dias) ele sumiu. Eu sabia que devia estar sem forças. Subi na bicicleta e rodei o bairro todo procurando-o. Entrei em cada terreno baldio e revirei cada moita do caminho. A noitinha ele apareceu cambaleante, entrou embaixo de uma gloriosa e deitou-se. Dei a última dose de anti-hemético ali mesmo, pois Sombra mal conseguia se mexer. Foi assim que passou todo o dia seguinte. Mary, que já estava melhor, deitou-se ao seu lado e o lambia de vez em quando. Dei uma dose extra de remédio e fiquei torcendo para que se recuperasse. No quinto dia ele levantou-se e pela primeira vez tomou água. Dali pra frente só melhorou, e quando chegou o dia de voltarmos a São Paulo, o levamos para a casa da Olívia no sertão do Perequê-Mirim. Ela sempre me contava como ele estava por telefone. Nas férias seguintes, fomos visitá-lo e foi nessa visita que vi pela primeira vez a bruxa Olívia. Eu estava com mal estar e ela me chamou para subir o morro com ela. Entramos na mata semi-virgem, Sombra na frente, Olívia no meio e eu atrás. Ela ia resmungando como se rezasse, Sombra ia farejando como um batedor. De vez em quando Olívia se abaixava, puxava um ramo qualquer e o cheirava. Alguns colocava nos bolsos, outros jogava de volta sempre falando baixinho. Na volta amassou um punhado de ervas e me deu para tomar. Eu confiava totalmente nela, nunca duvidei de que pudesse me ajudar.

Todo ano me avisava que iria para Aparecida fazer a romaria. Ia sozinha. "Ele", que era como se referia ao marido, não gostava. Foi de lá que ela trouxe minha muda de alfazema. Sei que não é alfazema, ela também sabia, mas o cheiro é muito semelhante, assim como a flor. A diferença é que a nossa é um arbusto alto com flores brancas e a alfazema legítima é um arbusto pequeno com flores azuis ou rosa. Olívia me disse que havia sido muito difícil conseguir aquela muda, pois a alfazema não dá mudas facilmente, e que a plantaria ali na casa da praia para que pudesse cuidar ela mesma da planta. Quando voltei a ver a muda estava enorme e florida. Algum tempo depois, Olívia me deu uma nova muda, conseguida a duras penas, para que eu levasse para casa em São Paulo. Minha alfazema cresceu e formou um canto de conto de fadas no quintal. Curvou-se como fazem os salgueiros e formou uma cabana florida onde minhas filhas brincavam. Num dia de festa, meu marido podou seus galhos em flor para que os convidados não se machucassem e meu pé de alfazema morreu. Olívia havia morrido poucos meses antes e eu chorei de novo sua morte quando perdi minha planta. Chorei mais ainda quando descobri que a muda de Ubatuba também havia morrido.

Mais de um ano depois mudamos de casa e trouxe comigo os poucos vasos que tinha. Despedi-me com tristeza das plantas do jardinzinho que custara tanto a conseguir fazer. Um dos vasos que tenho, o de espadas de São Jorge, plantei aos 18 anos e desde então já foi comigo para todos os lugares por onde andei. Passados seis meses na casa nova, vi uma plantinha nascendo em meio às espadas. Olhei bem e achei que era uma muda de alfazema. Comecei a vigiá-la esperando as primeiras folhas largas que me diriam pelo aroma se eu estava certa ou não. Um dia, chamei o jardineiro para arrumar o jardim e achei desnecessário avisá-lo sobre minha mudinha. Sai e quando voltei vi que a muda havia sido arrancada. Fiquei desesperada e sai em busca do seu Antonio. Ele me olhou apavorado e falou: Eu bem que vi que aquilo não era mato, mas como já tinha arrancado, plantei em outro lugar.

Minha alfazema tem hoje mais de dois metros de altura e continua exatamente onde seu Antonio a plantou. De lá pra cá já perdi a conta das mudas que tirei e dei de presente. Cada muda que faço, faço pensando na Olívia e, como não sei rezar o que ela rezava, rezo do meu jeito e agradeço o seu presente, eternamente.

fale com a autora

Para voltar ao índice, utilize o botão "back" do seu browser.