CARTA
Marina Salles

Querido Beto,

Quanto se passou desde o tempo em que até os pássaros eram feitos de prata? Eu olho em teu olhos, e o que vejo? Onde está o brilho que atravessava multidões? Roubaram-te os olhos felinos que encantavam estátuas de mármore; onde esconderam-te a alma?

Teus olhos ainda assombram minhas noites solitárias à escada de pedra no quintal. Desvio o olhar, miro meus dedos machucados, cortados de tantas vezes que discordamos, que brigamos - sabes como fascina-me a mão humana! E entretanto, além de minha mão, duas luas brancas piscam-me singelamente como eu te via fazer outrora.

Sei que não compreendes, mas ainda não consigo dormir sem antes desejar-te uma boa noite. Lembras de como temíamos os monstros do escuro, que expulsávamos ritualmente de debaixo da cama todas as noites? Meus monstros não desapareceram quando acendi a luz esta noite. Estavas lá. Sempre estás. Sinto a tua falta como se houvesse perdido a mim mesma. Meus olhos recusam-se a fechar, totalmente enfeitiçados pelos teus.

Sei que não aceitas, mas ainda sinto teu cheiro em minha cama. Não sei se podes compreender o vazio que se instala em minha alma quando chego em casa e não estás lá para receber-me. Não sei se entendes meu desespero a cada vez que digo que preciso de ti. Nenhum cobertor no mundo pode me proteger do frio que vem ocupar teu lugar quando me deixas. Somes por duas ou três noites, e eu como louca corro nas ruas gritando teu nome. Jamais me repondes. Às vezes chego a pensa que me deixaste por outra, que não voltarás mais. Mas então apareces em meu quarto, dormindo em meu travesseiro, como um anjo, inocente da dor que me causaste. Abraço-te e beijo-te com carinho e ardor, incapaz de culpar-te, apesar das lágrimas nos olhos. Por vezes penso que fazes de propósito. Sabes da minha fraqueza. Mas não sabes o quanto te amo, infeliz?

Lembras de quando marcamos nossas pegadas com tintas coloridas num papel? Era um 14 de julho. Lembro porque no mesmo dia sopramos as velas do nosso aniversário. Guardei aquelas marcas, sabe? Teus pezinhos pequenos hoje enfeitam a sala de jantar. Evito olhá-los. Sei que vou chorar. É ridículo, mas sem ti o 14 de julho é um dia triste...

Não me esqueci do único presente que me deste a vida inteira. Quando não chove, sabes que estarei lá fora, mirando o jardim, procurando tristemente a flor sob a qual guardei-o. Evito ficar em casa. Nunca experimentaste ficar aqui sozinho, sem ti, não sabes como é duro suportar o terrível silêncio. Ficas fora por quase duas semanas, mas falta coragem para guardar tua cama e lavar teus pratos. Somes, e voltas maltratado e maltrapilho, tufos de pêlos arrancados de teu corpo esguio. Pensas então que não sei onde passas tuas madrugadas?! Nunca estás quando me levanto. Trabalho a cada dia para nos sustentar a ambos, mas és tu quem acorda cedo e me abandona adormecida. Mal voltas agora para o almoço e o jantar. Que aconteceu contigo?

Foste de longe meu melhor presente de aniversário. Eu gostava de tua mãe e de teus irmãos, com certeza, mas por ti me apaixonei ao primeiro olhar... Teus olhos eram tão amarelos que até o sol parecia sem cor nem brilho! Cresceste rapidamente, também. Nunca me esquecerei do primeiro rato que encontrei sob um sofá, nem das baratas com as quais parecias entusiasmado sempre que surgiam. Com o tempo, me ensinaste a dureza da vida para a qual eu fechara os olhos. Deixei de ralhar contigo pelos passarinhos que trazias sempre. Contigo aprendi a viver. Nunca foste, porém, um grande santo como parecias pensar. Lembro-me muito bem de cada um dos presuntos e frangos que assaltavas descaradamente, sem que eu percebesse a tempo.

Hoje olho em teus olhos, e não sei bem o que pensar. A cada dia que se passa pareces-me mais distante. Sinto a tua falta mesmo quando estás por perto. Não reconheço mais o brilho vivo do teu olhar. Quando não te vejo, as manhãs parecem mais frias e as chuvas mais quentes. E nunca estás para acertar meu mundo. Às vezes pergunto-me se estás doente... Que me diriam teus olhos felinos?

Vou sair daqui. Não agüento mais essa agonia. Vens comigo, filhote? Seguirias-me para qualquer lugar? Preciso te abraçar com força, Beto, preciso te apertar contra o peito ao menos uma vez antes de abandonar para sempre esses telhados, apenas para ter certeza de que não me abandonarás quando chegarmos lá... E segue com esta todo o meu amor e minhas esperanças de que estejas aqui quando partimos.

Com carinho,

Amanda.

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