A
VIAGEM
Mairy Sarmanho
Tentei manter a atenção na estrada, mas a noite avançava rapidamente, o sono me invadindo. Pensei em minha mulher, em minha casa, nas coisas que gostaria de ter vivido e não vivi. Pensei muito enquanto procurava manter o carro longe do meio-fio. Fiquei imaginando o que teria de fazer quando chegasse ao meu destino e, de repente, percebi que não sabia mais qual era o meu destino. Senti um calafrio na barriga e imaginei-me morto, no meio do nada, vítima de um AVC ou enfarto. Não havia nada nem ninguém por perto, nenhuma iluminação naquela escuridão horrível que me cercava.
Estou ficando velho... - Pensei, temeroso de meu destino. As coisas já não funcionavam como antes, meu corpo dava sinais de idade e a imensa barriga atrapalhava a direção. Tive vontade de chorar, mas me controlei. Não havia razão para chorar, na verdade. O que estava acontecendo comigo acontecia com todo mundo: a gente nasce, cresce e envelhece. Estava envelhecendo e tinha que aceitar isso.
Pensei em quão feliz era, ao lado de minha mulher. Poucas pessoas podem dizer isso. Mas eu fui e sou muito feliz ao lado dela. Alguma coisa cruzou a minha frente e tentei travar. O freio não obedeceu, o carro deslizou para o lado e parou. Quis religá-lo. Nada. O motor estava mudo, indiferente ao meu desespero. Um certo pânico tomou conta de mim. Onde estava? A escuridão completa e o medo da morte se fizeram gêmeos. Tinha que descer e tentar consertar fosse lá o que estragou. E se eu tivesse atropelado alguém? Tinha que ter certeza de não tê-lo feito.
Combatendo o tremor que tomou conta de meus braços e pernas, abri a porta do carro. Um vento frio machucou meu rosto e tive a nítida impressão de que não havia nada mais lá fora, a não ser eu e o maldito carro. Desci cautelosamente e fui até a frente do veículo. Nada. Graças a Deus, não havia ninguém embaixo das rodas de meu automóvel. Respirei aliviado e abri o capô, para tentar entender o que havia de errado.
Meu coração disparou quando olhei aquilo. Estava vazio. Na frente, apenas o buraco onde deveria haver um motor. Trêmulo, não me dei por vencido. Fui até a traseira, levantei a tampa e... Nada. Não havia nada que justificasse o movimento do automóvel. Aterrorizado, entrei novamente e tranquei a porta. O que estivesse acontecendo, fosse esclerose ou simplesmente, psicose, estava acabando comigo. Liguei o rádio e uma música de natal ecoou em meus ouvidos. Era impossível! O carro não tinha nem motor nem bateria! Aquele rádio estava funcionando com o quê? Pilhas?
Tive vontade de gritar e gritei. Berrei o mais alto possível que minhas cordas vocais suportavam e comecei a chorar. Chorei compulsivamente, coberto de medo, temendo morrer congelado naquele veículo imóvel no meio do nada. O frio da rua entrou direto em meus ossos e não era capaz de impedi-lo. Comecei a bater dentes e encolhi-me sobre o banco, encostando a barba malfeita no chão. Queria que tudo não passasse de um sonho, que estivesse dormindo, que não fosse real.
Mas era. Senti que era quando o tempo começou a passar e nada de novo aconteceu. Éramos apenas eu, a noite e o carro sem motor. Pensei no que fazer, se iria me entregar à morte ou lutar, como sempre. Foi quando me veio a idéia: se o carro já havia funcionado sem motor, por que não o faria novamente, agora?
Apertei o acelerador e girei a chave. Estranhamente, começamos a nos mover. Mesmo temendo o ocorrido, decidi prosseguir em frente. Para onde, mesmo? Olhei pelo espelho retrovisor e percebi um enorme saco sobre o banco de trás. Devia estar entregando cartas... Acho que sou carteiro...
Continuei em frente, indo para... Sabe-se lá, onde. Já estava desistindo de encontrar uma cidade, quando percebi um amontoado de luzes esparsas na minha direita. Sorri. Onde haviam pessoas, deviam haver telefones. Poderia ligar para minha mulher e pedir-lhe ajuda. Ela me consolaria, como sempre. Viria me buscar, se possível. Me protegeria, como prometemos um para o outro.
A escuridão foi ficando para trás à medida que me aproximava das luzes. Comecei a achar esquisito meu próprio medo, a me lembrar dos olhos lindos de minha esposa e do sorriso que me mantinha vivo e presente. Arrumei-me melhor no banco e, quando entrei na cidade enfeitada com lindas luzes coloridas, comecei a rir. Parei o carro na frente da casa da pequena Ana Maria e entrei pela chaminé. Lá estavam servidos os docinhos que me esperavam todos os natais e, quando a vi, dei-lhe minha gargalhada mais gostosa e um hohoho! Repleto de felicidade e alegria por estar vivo e poder distribuir presentes por estes e todos os outros natais. Feliz Natal!
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