COXAS DE COMADRE
Luís Valise

 
 
Anacleto disfarçava a irritação distribuindo sorrisos, pratinhos com pedaços de bolo e copos de plástico com refrigerante. Aniversário de criança era um pé no saco, mesmo sendo o do seu caçula. Incansáveis, os monstrinhos corriam sem parar dentro do apartamento, soprando apitos, soltando gritos, caindo, fazendo guerra de brigadeiros. Pombinha fazia o mesmo que o marido, mas com satisfação. O sorriso e o olhar eram simpáticos de verdade. Alheios à balburdia que não dava tréguas, Oduvaldo discutia futebol com o Almeida e outro vizinho do terceiro andar, cujo nome não lembrava. Anacleto encheu um copo de cerveja e aproximou-se da roda. O assunto era futebol europeu, o que era ótimo, pois não teria que ouvir gracinhas sobre o rebaixamento do seu time. Um gordinho deu um tapa na cabeça da irmã e veio se esconder atrás das pernas do Anacleto, agarrando suas calças com as mãos sujas de chantili. Levou um discreto safanão e foi em busca de outro esconderijo. Anacleto olhava o vizinho do terceiro andar tentando lembrar seu nome, quando viu um par de pernas esculturais sentadas no sofá atrás do homem. Não via quem era, via apenas a barra do vestido preto, de onde saiam duas pernas de fechar o comércio! Da metade das coxas para baixo, roliças, alongadas, desconhecidas. Seu coração disparou, sentiu um princípio de ereção, tossiu, enfiou a mão no bolso para acalmar o tiranossauro. Deu meio passo para o lado, subiu o olhar das coxas para as ancas redondas, a cintura marcada, os seios miúdos, a Dorinha! Não podia ser! Sua comadre, mulher do Oduvaldo! Tantos anos de amizade, passeios em conjunto, e ele nunca reparara naquelas pernas! Ouviu a voz do amigo que falava algo sobre o Ronaldinho, sentiu uma ponta de remorso, voltou a prestar atenção na conversa. De quando em quando, irresistivelmente, olhava de soslaio as coxas da comadre, maravilhosas. Pombinha chegou por trás pegando no seu braço: - Cleto, vem me ajudar, amor!

Oduvaldo era seu amigo desde os tempos do serviço militar. Amizade inseparável. Casado com Doralice, pai de um casal de filhos. Anacleto e Pombinha eram padrinhos do menino. O barulho da festa ainda zunia em seus ouvidos, e Anacleto se revirava na cama, insone. Ao seu lado Pombinha dormia, exausta do trabalho da festa, seus preparativos, o corre-corre para que todos estivessem servidos, depois lavar a louça, passar pano molhado no chão grudento de pedaços de doce pisados, manchas secas de refrigerante. Um trabalhão. Anacleto sentiu gratidão pela mulher bem-disposta, alegre. Observava seu descanso merecido, a respiração compassada. Aproximou-se com cuidado e beijou-a levemente na face. Em seguida virou para o lado e procurou dormir. As pernas de Dorinha passeavam na sua memória.


O resto do ano passou rápido. Os últimos fogos do reveillon espoucavam na madrugada. As crianças dormiam no sofá e sobre o tapete da sala. Os dois casais faziam planos para as férias. Apartamento alugado na praia, combinavam o que levar. Anacleto mal podia esperar para ver Dorinha de maiô, tantas vezes vista com olhos de não-ver. O champanhe mandou-o jogar um beijo pra ela, seguro quando já estava na ponta do beiço: respeita o Dudu, porra!


O apartamento era espaçoso, a sala tinha sacada voltada para o mar. O tempo estava ótimo. Anacleto e Dudu mal terminavam de descarregar as tralhas, e as duas mulheres já iam correndo até o shopping pequeno e suburbano: - Vamos comprar umas coisinhas e já voltamos! Os dois se entreolharam sem dizer nada, e nem precisava. Era sempre igual.

As crianças zoavam na sala. A cerveja ainda estava quente, Anacleto e Dudu fumavam na sacada, olhando a praia cheia de guarda-sóis, comentando sobre as gostosas que passavam na calçada. Pombinha e Doralice entraram com algumas sacolas: bóias com animaizinhos para as crianças, cremes para a pele, dois pacotes de cigarros, essas coisas. Trocaram-se rapidamente e logo estavam de volta à sala prontas para a praia. Guarda-sol debaixo do braço, cadeiras de praia dobradas, esteiras, bola, bóias, isopor com pedras de gelo e latas de cerveja, uma mini-prancha de surf e disposição. Saíram.

Enquanto Pombinha passava protetor solar nas crianças, Anacleto tirou a bermuda, encolheu a barriga, passou as mãos no cabelo. Com o canto do olho vigiava Dorinha estendendo as esteiras na areia. Dudu já estava sentado, abrindo uma cerveja. Em pé, atrás do guarda-sol, Anacleto viu-a tirando a camiseta comprida, segurando pela barra e puxando-a sobre a cabeça. Ela não estava de maiô, estava de biquíni! Puta que pariu, como era gostosa! Aonde ele estivera todos esses anos que não vira aquilo? Dudu se levantou e começou a passar creme na mulher. Anacleto deu uma corrida e mergulhou nas ondas frias. Quando voltou viu Dorinha deitada na esteira, bunda pra cima, coxas separadas. Sentou-se na cadeira, pegou uma cerveja no isopor e procurou as crianças com o olhar. Depois de algum tempo, as duas amigas foram para a água. Anacleto ficou olhando Dorinha, como se olhasse Pombinha. Dudu quebrou o silêncio: - Adivinha o quê que a Dorinha fez? Comprou um baby-doll. Veja só! Depois de nove anos de casados ela ainda me vem com essa: baby-doll! O que será que ela tem na cabeça? Anacleto pensou tantas coisas, todas proibidas, respeita o Dudu! 

Depois da janta, ficaram batendo papo na sala. Começaram uma partida de buraco, mas logo Dudu começou a bocejar, Pombinha reclamou de sono, resolveram deixar para o dia seguinte. Todos foram dormir, menos Anacleto, insone, excitado, cheio de pensamentos. Ficou na sala com a luz apagada, deitado no sofá, cerveja geladinha do lado, cigarro, barulho das ondas embalando suas vontades. Adormeceu. Acordou com o deslizar de pés descalços no chão frio. Um vulto passou por ele e foi até a sacada. De baby-doll. A noite estava escura, a sacada mergulhada na escuridão. Anacleto levantou-se sem fazer barulho, chegou-se por trás da mulher e abraçou-a. Disse, baixinho: - Quieta, só um pouquinho!

Encostou na bunda firme coberta pelo tecido transparente, ficou alucinado, apertou os seios, mordeu a nuca, abaixou a bermuda e as calçolas da mulher e por trás, fazendo-a inclinar-se um pouco sobre o parapeito, penetrou-a, duro como há muito tempo não ficava. Ela nada dizia, apenas suspirava e gemia bem baixinho, enquanto remexia os quadris, até que um espasmo amoleceu seus joelhos. Anacleto não segurou mais e gozou intensamente. Ficou abraçado a ela por alguns instantes. Em seguida, coração aos pinotes, levantou a bermuda e voltou a deitar-se no sofá, braços cruzados sobre a cabeça, escondendo o rosto de vergonha. Como poderia encarar o Dudu amanhã? Ouviu a mulher voltando para o quarto. Depois de algum tempo, foi também para o seu próprio quarto. Pombinha ressonava. Deitou-se com cuidado para não acordá-la, e ficou pensando em Dorinha até ser vencido pelo cansaço.


Acorda pra cuspir! Anacleto acordou assustado, Dudu dava risada ao seu lado: — Vamos logo, tá todo mundo esperando! Anacleto disse para irem na frente, ele iria em seguida. Foi para o chuveiro. Lembrou da noite passada. — Que fodão! Fez a barba, tomou café, vestiu o calção e foi para a praia. Dorinha estava deitada na esteira, bunda pra cima, as coxas separadas. Dudu lia o jornal. Pombinha cuidava das crianças na beira da praia. Anacleto olhou o amigo com o canto do olho, não segurou um sorrisinho safado, e ainda pensou: — Quem mandou dormir?

Pombinha voltou, deitou-se na outra esteira junto de Dorinha e pediu: — Fica de olho nas crianças. Anacleto fez que sim com a cabeça e jogou o olhar no infinito. Seu pensamento acompanhou o olhar. Quanto tempo perdido... Devia ter comido Dorinha há muito tempo atrás! Mas antes tarde do que nunca! As duas cochichavam na esteira. Mulher junta sempre cochicha. Porém elas não davam risada. Anacleto ficou de orelha em pé. Seu sexto sentido dizia que não vinha coisa boa. Passou o resto do dia cabreiro. Quando voltavam para casa, Pombinha falou: — Mais tarde nós vamos ter uma conversinha. Anacleto ficou gelado. Olhou Dorinha, que lhe deu um sorriso. Ela devia estar ficando louca!

Após o banho, Dudu fazia uma caipirinha na pia da cozinha. Chamou Anacleto: — Você demorou muito para ir dormir ontem à noite? Anacleto avermelhou: — Por que você quer saber? Dudu não desviou o olhar do copo: — Parece que eu ouvi uns barulhos, não sei... Anacleto calou. Dorinha chegou por trás, passando a mão nas costas de Anacleto: - O compadre tá ficando um gatão, queimado... Pombinha que se cuide!, riu, deixando Anacleto com o rosto em fogo. Pombinha entrou na cozinha: — Ele é quem tem que se cuidar! Não é mesmo, "seu" Anacleto? Anacleto não sabia o que dizer: Dorinha sorria, com a mão em seu braço. Dudu não tirava o olho da caipirinha. Pombinha, com as duas mãos na cintura, olhava-o direto no olho. Anacleto pensou num enfarte. Seu coração estava disparado. Falou, e se sentiu pior: — Não sei o que aconteceu na noite passada... Não me lembro de nada... Dorinha fez cara sacana: — Não lembra, é? E olhando para Pombinha: — Os homens são todos iguais. Pombinha amarrou a cara e voltou para a sala. Dudu levantou os olhos do copo e foi direto: — Não fica com essa cara de besta, Anacleto. Nós já sabemos. Ela contou. Anacleto olhou para Dorinha, que rápida tirou o corpo fora: — O problema é teu. Comeu a carne, agora rói o osso! Anacleto se desesperou: — Desculpe, Dorinha, eu não quis... Eu não pensei... Foi muito forte... E saiu da cozinha. Na sala, Pombinha estava parada, fumando, olhando o mar. Anacleto chegou perto dela, encabulado. Falou com sinceridade: — Eu não sei o que dizer. Você deve estar me odiando. Isso nunca aconteceu antes. Você me desculpa? Pombinha virou-se para ele, soltou a fumaça de lado: — Se eu desculpo? Se eu desculpo? Eu só desculpo se você repetir! Anacleto olhou-a bestificado: — Repetir, como? Pombinha olhava dentro dos seus olhos: — Repetir como ontem. Eu queria te fazer uma surpresa com o baby-doll, mas você me surpreendeu primeiro! Você não me comia desse jeito desde quando éramos noivos. Lembra? Anacleto caiu sentado no sofá, as pernas bambas do susto. Era ela! Pombinha! Não sabia o que dizer. A mulher sentou-se no seu colo, brincou com os pêlos do seu peito e perguntou, manhosa: — Repete? O olhar de Anacleto buscou a sacada, o mar, e além, onde dormem nossas ilusões quando acordamos dos nossos sonhos. Dudu trouxe-o de volta: — Grande Anacleto! O tarado da sacada! Pombinha ria, com as faces ruborizadas. Dorinha ria, e piscava para Pombinha. Anacleto apenas sorria, melancólico, olhando as coxas da comadre.
 
 

fale com o autor