O TEODOLITO
Heringer

Meu amigo era filho de dois professores: o pai ensinava português; a mãe, inglês. Talvez por isso eu gostasse tanto de freqüentar a casa, que respirava saber. Foi essa gente que me iniciou nos livros e, se hoje leio tudo o que me chega às mãos, devo-lhes esta grande descoberta. Comecei com a turminha da Taquara-Póca, fiz expedições pelas Américas com o naturalista Alexander von Humboldt; embrenhei-me por matas e selvas africanas, com Edgar Rice Burroughs e seu lendário Tarzan dos Macacos — uma coleção primorosa cuja tradução é assinada por ninguém menos que Monteiro Lobato — saboreei vários livros de Seleções; li e reli Júlio Verne, também os best-sellers de Artur Halley, e outros que não me recordo agora.

O pai, um velho alemão, rosado, e de poucas palavras, tinha o hábito estranho: ler livrinhos de bolso que contavam histórias tolas e vulgares tendo como cenário o oeste americano. Li alguns deles e logo os deixei de lado, quando percebi que lido um, era como se já houvesse lido a todos. O personagem principal era o mais alto dentre todos — sua cabeça sobressaia sobre as demais — seus tiros, de tão certeiros, só atingiam o meio das testas vitimadas. O autor, um tal Marcial Lafuente Estefania, dele jamais me esqueci. O professor tinha lá uma mala cheia destes opúsculos. Um excêntrico! tal e qual o seu caubói favorito.

Mas, nem só de leituras vivíamos e quase sempre inventávamos outras coisas pra fazer. Foi numa destas que fiquei conhecendo o "Teodolito". A primeira vez que ouvi o nome eu pensei tratar-se de uma pessoa. Minha tia havia namorado um tal Teodorico, funcionário dos Correios, que viera de Beagá. Mas esse não era o nome de uma pessoa, e sim o de um aparelho medidor de terras. O velho alemão era também um agrimensor — depois fiquei sabendo — e com o instrumento media áreas e terrenos para complementar a renda familiar. 

Este Teodolito parecia-se com uma luneta comum; mas, sendo um objeto profissional e caro, tinha uma excelente qualidade ótica; e eu adorava ver as suas imagens coloridas. Assim, criamos uma espécie de jogo; um de nós escolhia o alvo que melhor lhe conviesse, ajustava o foco e oferecia a imagem capturada ao crivo do outro, que então tinha que dar uma nota — justa e honesta! De nossas avaliações esperava-se, acima de tudo, o equilíbrio, o caráter e o cavalheirismo. E tome flores, de cores várias; lagartixas e borboletas; gatos e cães, e qualquer sorte de viventes da nossa rica comunidade. 

Um dia, o meu amigo girava ainda o Teodolito à procura de uma imagem, quando eu descobri, em meio aos galhos de uma mangueira frondosa, um fantástico e surpreendente papagaio. Bom que se diga que os papagaios não eram comuns, ali, assim soltos — e provavelmente este fugira de alguma residência vizinha. Mal pude conter a ansiedade que me dominava; queria que ele focasse rápido o seu motivo; eu tinha até uma nota "oito" previamente acertada pra ele — para evitar que me fizesse perder mais tempo! e, então, eu colocaria o meu papagaio na mira, rico de cores, lindo de morrer! Dez — a única nota admissível para o meu achado. Depois eu inflaria o peito, cheio de orgulho e indisfarçável vaidade! Já antegozava a minha vitória...

Ele olhou o meu bichinho, pensou um pouco e respirou fundo — talvez, pra ganhar tempo —, fez uma cara de desdém e desfechou-me um absurdo "nove" que me feriu os brios... e os ouvidos. Nove, como nove!!! Ainda tentei protestar, indignado. "Nove..." — repetiu o sacana: frio, calculista, e despojado de quaisquer princípios morais — "...que o papagaio está muito velho e depenado!" 

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