A OUTRA FACE DA LÂMINA
Francisco Pascoal Pinto de Magalhães

Domingo de chuva e tédio. Tarde de futebol na tela, nos radinhos de pilha — partida insossa, covarde, jogo de compadres, 1 a 1. Uma branquinha para esquentar. Os desvalidos da vida, os desiludidos, os sem saída, unidos pela mesma sorte, marginalizados, nordestinos das mais diversas procedências. Alguns já nascidos aqui, na maior cidade nordestina do país.

— Donde cê vem, conterrâneo?

Não respondeu. Não estava para conversa.

Nem precisava. O biótipo
— a cabeça grande sustentada pelo corpo franzino — entregava: era lá de cima, como quase todo mundo naquele boteco em São Mateus, Zona Leste de São Paulo, Brasil.

— Não quer falar, não fala. Mas que tu é lá da terrinha, tu é. Baiano? Cearense? Pernambucano? Paraibano?

— Sou do Piauí.

— Passei perto. Sou de Oiticica, do Ceará, na divisa. 

Todo mundo mais ou menos daquelas bandas. Léguas de distância, esquecidos num canto da megacidade, comendo a tapioca que o cão amassou. A paisagem era outra; os personagens e o enredo os mesmos.

Tomaram outra branquinha. A desculpa do frio.

A cana subiu aos gorgomilos, ele cuspiu, tomou coragem, saltou fora. Pegou o busão no terminal e foi dar no Shopping Aricanduva. 

Primeira vez. Nunca tinha entrado em um shopping antes a não ser durante a construção, nas fundações. Fazer o que um peão liso que nem ele em lugar tão chique? Ele sabia o quê e estava decido. Deslumbrado ficou. Que nem quando viu a escada rolante do metrô. Mas não desviou-se do infame propósito. E seguiu farejando, procurando por Dilvaneide. Sempre que bebia dava de pensar desesperadamente na desgraçada. Ela tinha feito o que fez, arruinado sua vida, mas ele ainda gostava dela. Negava, mas gostava. Fugira para longe para esquecê-la, não conseguira.

Na feira do rolo, no sábado, encontrara dona De Lurdes. Castelo do Piauí tinha mudado inteiro para a Zona Leste. A fofoqueira pusera um feixe inteiro de lenha seca na fogueira: 

"Sabe que a Dilva está em São Paulo, Argemiro?", cutucou.

Não quis saber. Disse
— com a pulga atrás da orelha — que tinha raiva de quem sabia. 

A velha desviou o assunto. Falou da seca braba e, para variar, da vida dos outros de lá e de cá: 

"Zequinha de Hilária veio também" alfinetou a venenosa "Tá trabalhando na faxina lá no Aricanduva. Melhor que obra, não acha?"

Ele foi juntando os cacos, combinando as peças e entendeu o recado embutido. Qualquer coisa a ver com os boatos de Dilva se esfregando com Zequinha nos bancos de areia da beira do rio. 

"Devem ter vindo juntos, os dois. Amancebados. Deixa pra lá, que se merecem!"

Mas a cachaça reverte o bom senso, distorce os fios da razão. Duas na cabeça e a decisão de encontrar Dilva começaram a atentá-lo.

No banheiro masculino, Zequinha de uniforme cinza e esfregão na mão. 

"Se achando o tal, o filho-de-rapariga. Pra quem vivia passando fome..."

Do inferno para o céu. E Dilva fazendo comidinha, esperando cheirosa com a cama arrumada para o chamego. Nem aí com o frio, o sujeito. E ele dormindo em obra, roendo o osso, descontando as vontades nas quengas do Largo da Concórdia em dia de vale.

Ficou de longe, olhando, o ódio crescendo, inchando por dentro que nem sapo cururu. 

Fim do expediente, Dilva de botas, jaqueta alcochoada, gorro e cachecol no pescoço. Bonita que nem artista de novela. Zequinha trocara de roupa, usava rayban.

Inveja: pecado capital. 

Ciúme: perdição dos homens.

Ingredientes do prato indigesto da tragédia que se seguiu.

A faca foi fácil de comprar
— a loja de 1,99. Peixeira de aço temperado, cabo branco de plástico imitando osso. 

E Argemiro fez o que fez, ali mesmo, no estacionamento: a maior besteira da sua vida. Nem reagiu quando o guarda apontou o tresoitão. Nem ouviu quando Dilva angustiada o amaldiçoou sete vezes: "Assassino! Vai pagar essa desgraceira toda!" 

Zequinha estendido de bruços, olho sem brilho, o rayban despedaçado no asfalto molhado. 

A cama de Dilva vazia só por pouco tempo. Dizem que já traia Zequinha com um guarda municipal, a vagabunda.

Da janela do camburão ficou olhando o córrego tomando corpo
— água suja não lava honra. Lembrou do sangue esguichando do pescoço do desafeto.

Impregnados, respingos na camisa e o perfume de Dilva nas narinas. 

A água invadiu a viatura e ele desejou morrer afogado; mas os tiras o resgataram para que pagasse a culpa. 

No abrigo de um bar, sob o toldo negro de fuligem, o cara que colocava as cadeiras encima do balcão comentou com um dos meganhas que o jogo no Pacaembu tinha sido interrompido: "Adiaram para quarta. Campo alagado. Sem condições."

Ninguém tinha mais nada a perder aquela tarde.

Noutra tarde, a face inversa da faca, a segunda lâmina, a que lhe era reservada, penetrou-lhe devagar pelas costas, traiçoeira, sem que ele percebesse. A pele amarelou, o volume e a cor da urina alteraram, a insuportável dor na panturrilha o impediu de sair para o banho de sol.

Leptospirose*, diagnosticou o médico do presídio. E era tarde. 

Morreu como um rato.


*A Leptospirose é uma doença infecciosa causada por uma bactéria chamada leptospira que é eliminada pela urina de ratos e outros animais, contaminando os esgotos, o solo e os alimentos. Durante as chuvas fortes, os rios, córregos e a própria rede de esgoto transbordam, aumentando assim a possibilidade de contaminação. 

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